Vértebra 45

Dt7 O frei cavaleiro que viu o amor de Francisco e Clara em 1212
Ururaruaçu chegou ao apartamento pelas vinte e duas horas. A Arena de Manaós sempre em festa, as espoucadas agitando o espaço. Noite escura, viria chuva. A índia encontrou Pedro Kambami sentado à mesa, luzes acesas. Eles não se falavam muito, não havia camaradagem. Ururaruaçu sabia que, por ser homem, o comando da casa lhe cabia. Não tinha interesse em ombrear com Pedro. Não havia hostilidade no ambiente. O pedido foi breve e definitivo. Ururaruaçu insistiu em se despedir de todos. Pedro ponderou, que ela guardasse suas forças para o sacerdócio, a medicina ia exigir um bocado e o juramento seria decisivo para a futura profissional. Indicaria o lado no qual a índia passaria a andar. Disse que ninguém ali lhe guardava rancor. Que nada ocorrera de grave. Só chegara o momento de partir, antes que o desequilíbrio assombrasse a tênue afeição. Pedro tinha sido instruído a oferecer acomodações à índia, bem como um pecúlio para que ela pudesse seguir sua jornada. Ururaruaçu não sabia ser resiliente em situação como essa. Parecia, contudo, que um antídoto lhe fora inoculado. Sentia-se como que neutralizada. Uma forte dor na nuca a acometeu. Ela baixou a cabeça e ficou em silêncio por longo tempo. Pedro Kambami, que tinha familiaridade com répteis, aguardou os próximos movimentos. Não hesitaria em colocar a moça para fora com energia. Não foi preciso.
Durante o voo, um tanto de turbulência desassossegou Isi, que se queixava de dores no pescoço. Jade segurava João Claro adormecido. Jovino pediu para amparar a menina. Nenhum deles dissera palavra desde que os preparativos da viagem começaram. Pareciam imantados por forte cordão encarnado. A mudança não causaria embaraços ou cancelamentos. Serviria como um recreio de final de ano, comemoração merecida para Jovino, novo integrante da Orquestra de Cordas Dedilhadas do Município de Manaus. Fia impôs sua mão sobre a nuca de Isi, para se certificar de que não era um ataque de meningococos. Jade pode ver o fenômeno. Havia uma aura escura no lugar, que Fia drenou em poucos instantes. Depois, explicou que chamavam `aquilo ‘mau olhado’. Feito o procedimento, Fia se sentiu cansada. Ao pisar terra firme, Fia colocou a família em uma perua com a bagagem e foi direto para o rio. Quase não podia respirar, carregava fardo seu e de mais alguns. O corpo fibrilava. Mergulhou nas águas barrentas daquela margem do Juruá. Logo, uma arraia lhe atravessou. A descarga elétrica durou brando segundo. Algumas piranhas lhe picaram a carne. Fia deu braçadas longas, de costas. O céu petróleo chorou meteoros, muitos de uma vez. Ubiratã esperava na beira. Mãe-da-Lua sorriu tão brilhante que raiou todo o rio com seu halo prateado. Um coro de urutau ambientava o quadro. O menino redemoinho abriu um olho na água e Fia foi puxada, vários metros adentro. Viu, naquele zumbido maravilhoso, os tempos em que as tribos eram numerosas, homens vigorosos e mulheres macias. Crianças vivas. Acendeu.
Viu a grande nau aportando na costa, viu subir o cruzeiro, viu o frei a escrever na areia, viu o primeiro homem branco a alisar uma índia, viu prazer, viu espelhos, água de cheiro, sedas, viu transtorno, gripe, tifo, lues, punhal, dissolução. Viu Naiá tocar Iaci. Viu a vitória-régia. Viu solidão. Um boto-cor-de-rosa devolveu Fia à margem e Ubiratã acolheu. Retirou os picões que espetavam a pele, beijou cada mordida, cobriu com tamanha efusão que Fia pensou que morria. Abraçados os dois como se um fossem, Ubiratã lhe perguntou o que fizera. Por que carregava tanto. A jaguatirica descomprimiu cada disco intervertebral, avivou a pele, escamou, balsamizou com óleo. Esfregou as pernas, fincou as presas nas solas dos pés. Ia cantando enquanto trabalhava, que se dissipassem as pressões, as dores, os nojos. Exalar, que parecia impossível um minuto atrás, foi libertador para ambos. Os ombros se renderam. A maracajá às costas de Fia sussurrava cromaticamente Xaxim Verdadeiro Xaxim Verdadeiro Xaxim Verdadeiro Xaxim Verdadeiro. A pele dela foi aos poucos ficando laranja, com pequenas manchas pretas. Os dentes dela cravaram a nuca da mulher e ali ficaram a doer fundo. O sangue jorrou, quase um litro de transfusão. Quando soltou, salmodiou Byr Byr Byr Byr Byr Byr. O pelo do animal provocava arrepios. As patas do Ubiratã contornaram o ventre de Fia, riscaram formas triangulares, isométricas. Ubiratã subiu às costas da índia presa contra o humus e gravou círculos concêntricos, lágrimas, pétalas, asas, olhos. As tatuagens cobriram as costas, as nádegas, a parte de trás das coxas, as panturrilhas, tornozelos. A índia virou-se, puro ardor e ainda lhe ofereceu a parte sã do pescoço, o seio direito, o monte de vênus, o dorso dos pés, os joelhos fletidos, separados. Ubiratã mordiscou-lhe a boca, a língua, o nariz, os lobos das orelhas, as pálpebras. Agarrou-lhe os cabelos revoltos com os dentes e a arrastou novamente para o rio. Fia foi amparada por iacitatá e desfaleceu.
Uraci amanheceu dengoso, enrolado nas nuvens. O vestido de Fia esvoaçava como vela, preso a um galho. Um cão de pelo curto, todo preto, dormitava perto da borda, um olho vigilante. A moça emergiu, sentia-se melhor. Secou-se ao vento, fez festa em Kiru com tanta delicadeza que o cão lhe sorriu. Quando chegou ao rancho, já era a décima hora. Sá Ana a abraçou, aliviada.
Na varanda, Jade terminava de ler para Isi a história de Francisco de Assis que Selim lhe dera. Seus olhos, marejados, sorviam renúncia e afeto quintessenciado. Ele se imaginava ora Clara, ora frei, unidos em um mesmo ideal. Antes de irem se deitar na noite anterior, ficaram sozinhos, Selim e ele. Jade contou sobre o burburinho que vira crescer na rua de sua lojinha, assim que vendeu o primeiro tapete. Sentia a inveja e o ciúme do comércio à volta. Ao baixar as portas e aceitar viajar, corria o risco de ter seu material roubado e depredado. E então, o que faria quando voltasse? Selim, que tivera tanto que chorar na jornada, pediu-lhe calma. Sem saber ao certo que efeito teria, pôs nas mãos do amigo a história mais bonita de desapego que conhecia.
Ancorado no município de Borba estava o Igaraçu há dezessete dias. Aín concluiu a faxina e pediu permissão para ir à terra. Havia um pequeno comércio onde ele comprou peixe seco e farinha. Pensou em comprar cachaça mais de uma vez. Preferiu uma garrafa com suco de cupuaçu. Comprou também essência de tarumã, para conter as fibrilações do sangue. Sentou-se em um trapiche. Depois de comer, pitou seu palheiro, para a alegria do trasno. Uma certa intuição se desenvolvia no frei. Ele não sabia que havia recepção e devolução de suas falas, porém a comunicação com Bar e Yin-Yin era inteligível e verossímil. Para Aín e para os transeuntes, não passava de um falar de si para si. Bar, exasperado, dizia que aquele seu desejo de andar sem rumo era uma perda de jornada. Yin-Yin arrematava com o exemplo das chibatadas que recebera no vale.
Há dias Aín estava afundado, uma neblina densa a confundir seu tino. Bar não via nisso novidade. Desde que o frei entrara em Eirunepé em missão de cura e tocara aquela pedra, um redemoinho o puxou alguns metros abaixo e o homem não teve forças para subir. Mais fundo desceu quando esposou aquela menina e a largou à mercê de malfeitores, abjurando. Bar lhe soprou Isi’po. Bar lhe soprou pau brasil. Bar lhe cantou Carolina. Yin-Yin tinha sido carregado outra vez, em uma caravana que passara, repleta de lamuriantes arengas. O trasno vira o brilho do manto azul celeste entre os sofrentes. E foi assim, como se o braço de Uraci pendesse para fora da coberta de nuvem. O trasno começou a taramelar as vésperas. Ora a voz principal, ora a segunda, ia desfiando o rezo sem muita afeição, sem ironia. Para Aín, abriu-se o escuro de seu riacho íntimo. Ele não contabilizara, mas sabia que usara suas mãos em muito, muito morto vivo e vivo morto. Velho, moço, criança, sem olhar a quem. Dera de bom grado, jamais esperara recompensa. Apenas sentia fome. Tinha feito os votos, tinha entendido a lição, tinha tocado a túnica puída de Francisco, recebido a unção de Clara. Tinha chorado com a resiliência de ambos. Com a morfeia que se abateu. Só esquecera os benefícios da confiança. Do pagamento da semana no Igaraçu, possuía dinheiro suficiente para trocar por um jegue estropiado. Tocou a carta do Bispo na sacola e tomou a decisão.
Fia encontrou Dona Tem no hospital, dois dias após sua chegada a Eirunepé. A professora fora morar na pensão ali perto. Era mais fácil conseguir alunos particulares. Era mais seguro. O abraço demorado devolveu ânimo a ambas. A professora envelhecera. Um brilho novo animava seu semblante, entretanto. Foram juntas à enfermaria onde dormia Moeemo. O índio katukina estava em observação, suspeita de meningite. Tijuca segue, à procura do sol, contou Dona Tem. Parece abrandado em seu tormento, como se lhe houvera afrouxado a corda na cintura. Cessou aquele empurrar a carroça em parede reta. Aquele ódio da Gaia, do céu, da mata, que o demovia a quebrar o que mais apreciava.
Fia olhou o menino Moeemo e viu no pescoço da criança o fluxo escuro. Perguntou à enfermeira se era possível arranjar sal grosso. A senhora, atenciosa, disse que havia um mercadinho há alguns passos do hospital. Quando voltou, Fia pediu uma fronha limpa na lavanderia e derramou todo o conteúdo do pacote dentro dela. Havia também folhas de louro, alecrim, manjericão e gotas de tarumã. Ajeitou a almofada ao lado do pescoço do curumim. Ao invés de puxar os fluidos cinzentos com as mãos, imantou a almofada. Pediu à enfermeira que mudasse o lado do unguento sempre que viesse ver o menino. Avisou que um visgo sairia pelos ouvidos, mas ficaria preso à fronha, sorvido pelo sal. Se usasse luvas e máscara para fazer a troca, seria melhor. No dia seguinte, que ela ou outro enfermeiro incinerasse a almofada, sempre munidos de proteção. Trocassem os lençóis e lavassem o menino com solução de vinagre, uma gota de tarumã. Que lavassem bem as mãos após cada operação. Explicou a Dona Tem que não era com meningococo que lidavam. A professora, racional, manteve-se neutra, não podia negar os benefícios que vira Fia oferecer a muita gente enquanto moravam na mesma travessa.
Os enfermeiros, imantados com lisianto, não se negaram a cooperar. Fia passou os olhos pela enfermaria. Dezenas de sofredores invisíveis pairavam no ambiente, alguns raivosos, outros amarrados, outros capazes de canibalizar. Produziu uma bola de amor-perfeito, que afugentou alguns e fez outros pararem de gritar e gemer até a manhã seguinte.
Vinte e cinco translações da Gaia para a tarefa de Fia. Dona Tem, quando foi ver Moeemo na manhã seguinte, o encontrou sossegado. O índio estava banhado, alimentado, o soro o ajudaria a readquirir energia. Dr. Silva segredou à professora que uma melhora considerável se operara na ala toda, da noite para o dia. Alguns pacientes puderam ir para casa. O moral do pessoal de serviço elevou-se. Dr. Silva ficou impressionado com o procedimento utilizado com Moeemo. Era intuitivo, mas de valor comprovado. Dona Tem falou de Fia, a filha adotiva do velho Selim. Contou que a moça pleiteava uma vaga como estudante de enfermagem na UFAM. Dr. Silva, mais tarde, ligou para o velho Selim. Além da visita rotineira, queria conversar com sua filha.
Na travessa havia sangue novo. Três nascimentos no último mês. Os gêmeos de Geisa, o bebê de Filó.
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