Vértebra 42
Dt10, Katukina ou Arissana
Tijuca encontrou a clareira vazia. A oca deserta. Kiru farejava o espaço e abanou a cauda. O lugar era próximo à Foz do Tarauacá. Habitaram ali cerca de setenta índios, os pertences abandonados assim informavam. Tudo indicava doença devastadora. Tijuca explorou o sitio e logo encontrou o piso funerário. Várias urnas, feitas de cerâmica, sobre as covas. Vinte e seis mortos se contava, passamentos recentes. Os demais debandaram, era possível ver-lhes rastros. Seguiram em direção a Itucumã. O índio confirmou com Kiru, não havia mais perigo de contaminação. Pelo sim, pelo não, Tijuca tratou de entoar cantos de limpeza. Fez alguns tufos de orégano, alecrim e tomilho que encontrou na horta ainda viva e os queimou por fora e por dentro da oca. Quando a noite chegou, índio e cão se instalaram em rede recém tecida, ao lado do fogo. Um pequeno veado assado. Sapé sobre as cabeças. Há quanto tempo dormiam ao relento? Ainda não era, nem de longe, o encontro com Uraci. Tijuca dera com a morte outra vez. Acostumado a jornada sombria, descansou sem sonhos. Assim que amanheceu, o índio saiu com Kiru, para explorar os arredores. E foi então que encontrou alguma perspectiva.
O pequenino, de uns sete anos, estava sentado ao lado do irmão morto, muito fraco para atender ao chamado de Tijuca. Tomado por uma comoção nunca sentida, o Yorimã achegou-se do menino, depois de o cão o farejar e lamber. Sem reação, porém vivo. Tijuca estendeu os braços, no intuito de envolver o corpo da criança para a levar dali. O menino esquivou-se, disse irmão e segurou a mão do morto. Pela primeira vez Tijuca soube o que dizer e fazer. Já passara, de alguma forma, por aquela experiência. Fechou os olhos do adolescente estendido e cantou Aunguhi. O menino levantou-se como pode, reverente. Ficaram assim por algum tempo. O cão em silêncio, assistia a tudo apoiado nas patas dianteiras. Hora de muito tato e decisão. Mover e sepultar o cadáver. A criança morta foi levada no colo para o pátio funerário. O irmão ao lado, seguido pelo cão. Tijuca lançou mão da rede que tecera na véspera. O corpo cedeu à dobra, foi colocado em posição fetal. Envolto pelo cipó, foi depositado em uma cova voltada para a nascente do rio. O menino ajudou a cavar e também colaborou na cobertura com barro. Pisaram a cova ainda cantando. Depois de concluída a cerimônia, foram ao rio se banhar. Kiru entrou com eles e ficou perto da borda. A mata forneceu frutas. A horta tinha um pouco de mandioca. Tijuca fez uma papa para o menino, que depois de comer dormiu, aninhado ao corpo de Kiru.
Tijuca, desperto, olhava Iaci plena pela abertura da palha. Muito ruído corria pela sua mente, imagens de muitos lugares e gentes. Ele percorrera o Brasil, de norte a sul, a pé ou de canoa. Conhecia toda a costa. O Chuí. O Oiapoque. Conhecia Brasília. São Vicente. O Rio Bonito, lugar em que quis ficar. A Mamoré. O Rio de Janeiro. A Mata Atlântica. A Serra da Mantiqueira. Até ao Santuário de Nossa Senhora Aparecida foi, assombrou-se com os mosaicos, com os sinos. Jamais lhe barraram, mesmo ao andar nu. Jamais lhe exigiram documentos. Estava nos lugares e desaparecia deles, como que por encanto. Andou pela Bolívia, Colômbia, Venezuela. Subiu o Machu Pichu. A narrativa já registrou que todos estes caminhos e outros foram regados a violência, morte e destruição. Sabe-se também que só uma vez foi socorrido. E ali estava o Yorimã, mais ou menos refeito, numa aldeia Katukina abandonada, com um menino, uma tumba e um cão.
Tijuca nunca fizera ou pensara fazer pacto com Yurupari. Sentira grande cólera em menino e isso foi tudo. Nunca calçara sandália. De cortante, um punhal amarrado à cintura, usado para destrinchar a caça, romper alguns pescoços e outras partes humanas, além de desfiar os cabelos, que mantinha na altura do ombro, presos na testa com o mesmo material que usava como cinto. As imagens lhe desfilavam a maneira de filme super oito. O índio caprichoso abriu uma lata de solidão na memória. Nesse rolo apareceu a aldeia de Curuatinga. Quis esquivar-se dessa lembrança. Olhou demorado para o guerreiro, o homem que ele idolatrou.
Era mais do que ser cacique, ou ser como aquele cacique. Impulso denso para ser trazido ao campo da razão. Curuatinga, digno em vida e na morte. Quando sentiu a fisgada do punhal às costas, olhou para trás, a tempo de lançar uma chama azulada. A força daquele guerreiro estava nos olhos. Por isso Tijuca tinha sido covarde e não o enfrentara face a face. Não suportava aquele olhar, não admitia a admiração que nutria. Por isso lhe enterrou a cara no formigueiro. Munido de uma audácia maior que a de um humano, exterminou os demais guerreiros em minutos. Pendurou-os nas árvores, para velarem seu cacique vencido.
Pensou em voltar para a aldeia, exterminar também mulheres e crianças. Encontrou primeiro a menina. A mesma doçura de sempre. Lambuzou-se tanto com ela, machucou tanto que se fartou de morte por aquele dia. Mal sabia que a criança mulher tinha poderes nas mãos, que apaziguaram o Yurupari e esfriaram os desejos do índio. Mal sabia que daquela curra viria Isi’po. No mesmo instante, Orun dançava para que o Yorimã não voltasse mais.
Daí se perpetuaram as sandices. É sabido que Tijuca destruiu tudo em que colocou as mãos. Até o dia de encontrar a mulher. Só que ele não soube disso. E ali estava ele, encostado na oca, a olhar Iaci, que também esperava Ife.
Mais alguns dias e Tijuca concluiu que não poderiam ficar nas terras Katikuna. O menino ia morrer, estava fraco. Algumas horas de caminhada e tomaram uma embarcação no Juruá. O barqueiro aceitou o punhal como pagamento e os levou até Eirunepé.
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