Vértebra 44





Dt8 Anu-coroca  ou

rumores sobre  irmãos pretos, na terra Brasil e além mar



Fia não contou mais sua história original a novas gentes. Limitou-se em dizer o combinado com seu tutor, o velho Selim, no dia em que recebeu sua documentação, que tinha sido achada, adotada, amada. E que do amor nasceu a sua filha, Isi. E que adotou João Claro. E foi assim, com todos os que conheceu após a doutora Ururaruaçu. Para tiquera, para pai de Isi, ficou aquele aleive de homem branco, depois a puca do cipó para firmar poder. E então a dissolução da tribo. Não era culpa de Fia, não era culpa de ninguém. Era responsabilidade, não sabia com quem. Não era ato de rebeldia, ou empurrar no oceano os refugos do tempo. As imagens iam e vinham, como ygára solta no Eiru. 

 

O sono tinha trazido de volta aquele dia em que o Yorimã Tijuca apareceu na mata de olhos injetados, no dia em que Xaxim Verdadeiro colhia ajuru. A Natureza tratava de reabilitar os fatos, como o faz após um fogaréu. Fia seguia com a sua dificuldade em juntar as ideias concretas ao plano abstrato, a língua em que nasceu se esfacelava. 

 

No plano abissal, a quase nada Fia tinha acesso. No sonho era Tijuca, arrependido. Ele lhe oferecia um camaleão, de vida curta, como símbolo desse sentimento novo. Falou também da menina Isi, agradeceu os cipós que lhe coseram a costela furada. Fia viu a apertura para respirar que o índio mostrava. Teve pena.


 

 

Ururaruaçu afastava ponderações. Não eram sentires fraternos, onde coubesse partilhar memórias ou qualquer saber. O que pairava na convivência entre elas era algo como o que Fia vivera com aquela mulher dos bicho-pau. Era medicamento, a ser usado com parcimônia, para conforto e corrigenda e só. Tinha começo, meio e fim. Quem sabe, o estado de alma provocado pela competição por uma vaga na universidade, um feito pleiteado em cotas, alterasse levemente o humor de Fia. Nublava a visão, isso é certo. Abria brecha para estocadas a traição. O sonho da madrugada trouxe Curuatinga que nada disse, sorriu e apalpou seu seio esquerdo e chupou o mamilo. Fia acordou suada, com cheiro de acuri. Tomou Isi nos braços, ainda dormindo, acomodou-a no balaio da bicicleta e foi bater à porta de Jade, que desceu assustado. A mãe lhe pediu, por Tupã, que olhasse a filha por algumas horas. Jade sorriu, tocou seu braço esquerdo e pegou a criança que ainda dormia, um pouco febril. 

 

Ao sair de casa naquela madrugada, Fia sentia raiva pela primeira vez. Não era dada a discussões, a manter desajustamentos, a levantar poeira. Estava descontente, suas fronteiras invadidas. O suor das pedaladas ajudou-a na concentração. 

 

Chegara a hora. A raiva tomou grande parte do seu raciocínio. Fia sentou-se na sala do exame com tempo. Não relaxou, ao contrário. Cumpriu todas as etapas, respondeu a todas as questões com uma garra ainda não experimentada. Revisou a prova duas vezes. Entrou e saiu do local em silêncio, coruscando. De bicicleta, pedalou pela capital, por lugares já conhecidos e por outros recantos arborizados. Deu no rio. Não era saudosismo, ou um não encaixar-se no asfalto. Era apenas o desejo de tocar um camaleão, topar com um lagarto. De agarrar e cheirar o humus poderoso nos espaços não visitados por Uraci. Uma sensação de que se perdera na rota. A certeza de que não teria companheiro, como Ceição. Uma dor pungente no seio a fez lembrar de uma fala. Mesmo sozinha, estaria consigo.

 

Fia entrou na Igreja de São Sebastião. Antes, observou a construção por fora. Visualizou os pedreiros a encaixar os blocos, a passar a cal, a erguer o sino. Ficou pelo menos hora e meia olhando. Caminhou pelo espaço interno. Parou diante das imagens e procurou entender aqueles ícones em martírio, dava-lhes história. As flechas em Sebastião a comoveram. Sentou-se em um dos bancos, as pernas tensas.  Uma mulher começou a entoar as vésperas, que eram acompanhadas por outras senhoras, no átrio reservado ao coro. O canto movimentou energias potentes, atraindo centenas de visitantes invisíveis, nas mais diversas condições. Eram, em geral, grupos conduzidos por seres lúcidos. Fia viu uma cortina de proteção se formar no recinto, ela envolvida no manto, de cor predominantemente azul. Foi então que avistou Amerê e outros irmãos pretos, recém resgatados de algum pântano, alguns levados ao colo, adormecidos, muitos feridos. Passavam por ali para se lavar, beber água purificada e então seguir por sobre os céus da África, para o Cairo, Afeganistão e outros lugares daquele continente. Amerê não podia conversar. Apenas olhou Fia, impôs-lhe as mãos sobre a cabeça e temperou a raiva com compreensão. Agora, era assumir a jornada.

 

Fia saiu da igreja passado o almoço. Na árvore que fazia sombra logo à entrada, ela viu o anu-coroca naquele seu azul peculiar. O pássaro veio pousar em seu ombro. A imagem atraiu a atenção de turistas. Fia sorriu, pedalou e o anu coroca seguiu junto, aboletado na borda do balaio. Mais carecimento da mata, do rio.

 

Em dado instante, o pássaro se despediu e seus olhos sugeriam coragem. Voou alto, em direção ao Negro. Lá estava a índia consigo. De um telefone público, Fia ligou para o velho Selim. Que bom que podia fazer assim. No final da conversa, o convite para ir a Eirunepé. Esperaria o resultado da prova com ele, tomaria banho no Juruá, reencontraria Sá Ana, Dona Tem. Seria bom. Que viesse com Jade e os meninos. Bom também para Pedro e Ceição ficarem um pouco um com o outro. Antes de desligar, Selim pediu para que Pedro Kambami falasse com ele ainda naquele dia. 

 

Os arranjos foram feitos de forma harmoniosa. À décima nona hora, os passageiros com destino ao interior chegaram ao aeroporto sem alarde, contentes pela movimentação.

 

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