Vértebra 43





DT9 Paumari, ou Como se expressar pelo sereno da letra

 

 O Yorimã prestou socorro pela segunda vez. Na enfermaria de Eirunepé, o indiozinho foi medicado, estaria a salvo, por ora. Ao parar na entrada do prédio, Tijuca viu passar aqueles bicho-pau que tanto o agastavam. Era uma Cândida diferente, envelhecida. O ir dela não dava margem a engano: era para lugar algum que ia. Ele notou um cancro sobre o lábio da mulher e soube que faltava verde foz naquele mundo onde estavam. Pela primeira vez, lágrimas se formaram naqueles olhos sem rio. Se Cândida o viu, não deu mostras de o querer. Não que Tijuca um dia tivera afeição por aquela mulher. Uma fisgada profunda no fígado lembrou que a vulnerabilidade pertencia aos habitantes da Gaia. E que ele era uma pulga nesse chão. 

 

A intensão era deixar o menino do Tarauacá no hospital e sumir novamente. Olhou em volta e Kiru não estava. Pesaroso, caminhou devagar e parou diante da escola. Ninguém o barrou quando cruzou o corredor desgastado. Escutou aquela voz grave a falar sobre a etnia Pataxó, sobre o esforço de recuperação do idioma. Tijuca ficou olhando as imagens da porta. Eram obras da artista Arissana. Na retina do índio ficou uma pintura familiar, dois índios criança, lado a lado na simplicidade da clareira. Dona Tem precisou se sentar. O quebrador de ossos estava parado ali, quebrado.

 

O povo da água. Grandes promessas, humanidades reconstruídas em pequena escala. Cuidar dos sentimentos era investimento, maior que os tapetes. E quem nunca os sentira, como fazer? Esperar e ver. Para quem tem ouvidos, a água está em toda parte. Sereno da letra, um dia alguém lhe escreve a história.

 

Jade lembrava tanto a Indiara que chegava a assustar. Um personagem frugal, sem ontem e hoje mais para amanhã. A parecença gerou fluxo em João Claro. O pequeno passou a responder aos tratamentos, a se alimentar melhor, a resmungar frases inteligíveis. Ficava sentado e atento por mais tempo, brincava com as peças de madeira, aceitava a companhia de todos. No colo do turco, intervalo da terapia, aguado som, João Claro, olhos postos no amigo, pronunciou a palavra mãe. Jade, que só sabia de balaios, considerou o conteúdo deles. Nada tinha de seu. Sabia que o menino tinha guarida. João Claro tornou a cantar a palavra. Nas entrelinhas, parecia dizer é o que sinto.   

 

O apartamento parecia uma taba. Os festejos da Arena de Manaós vinham com o vento. Ceição dividia a administração da casa com Pedro Kambami, que entendera prontamente o funcionamento da comunidade, enfraquecida quando não pulsava junto. O casal abriu mão de se mudar. Cada um que entrava naquela clareira tinha uma função primordial, renovável de acordo com as urgências. Parecia um território diplomático, só faltava o idioma francês nas intermediações. Os quartos eram aduanas fortificadas, responsabilidade legal de seus ocupantes. Um Itamarati sempre aparelhado. O espaço comum era  concílio, recreação. Três banheiros provocaram verdadeira revolução no ambiente. A cozinha era revezada por várias mãos, o que enriquecia mui a convivência. Ali se partilhavam culturas, jeitos curiosos de comer. Melhorava o paladar, a conversação, a vibração, e não eram poucos os comensais. Pedro Kambami, que entrara renitente naquela floresta na capital, em poucos dias se tornou o maior adepto do encontro. Como seus pais haviam partido para outros mundos e ele não contava com parentes nas redondezas, mantivera a retranca. Agora, era o mais extrovertido da casa, sem ser ridículo como acontece às vezes. Passou a tolerar melhor um pouco de esteio. Aparentemente, o que pesava para ele era o financeiro, mas o afeto que o  sedimentava superou qualquer expectativa. Selim havia deixado clara a importância de Ceição e Jovino para ele. Como Pedro Kambami nutria a ambos com ternura, o velho era grato. Bastou isso para abrandar corações, dar crédito e tornar produtiva a convivência.

 

Jade, o turco, transitava bem entre o masculino e o feminino daquele clã. Convivia  com Jovino e Pedro Kambami e irmanava com as mulheres, uma elegância. Tinha a própria casa, no piso superior à lojinha de balaios e tapetes, porém passava bastante tempo com a diversificada família. Para a satisfação de Jovino, Jade tocava teorba e sua voz aguda harmonizava com a grave de Pedro Kambami. Um interessante grupo informal ia nascendo dessa camaradagem, Isi partícipe das sonoridades, com sua rabeca chorona. 

 

João Claro completara quatro anos e meio. Imerso no caldo pancultural, fazia jus ao nome que recebera, escolhido por Isi. Era um luminar, mundo primevo, instigante para quem tinha paciência de conviver. O menino ganhou de Jade um tambor do seu tamanho, de grande poder, também um par de címbalos. Dotado de acuidade rítmica, o curumim enfeitava as interpretações com tempos e contratempos inesperados, precisos. As tardes de domingo eram alegres. Alguns condôminos vinham para as refeições e fruíam os saraus musicais. Curavam-se uns, alisavam-se outros, contavam Ara outros. 

 

Um pouco apartadas do burburinho, Fia e Ururaruaçu estudavam com afinco. Faltavam alguns dias para a primeira enfrentar o ENEM. Para a segunda, era o ingresso como interna no Hospital Universitário Getúlio Vargas. Isi estava dormindo na rede, ao lado delas. Não passava bem naqueles dias. Fia ponderou que a menina estava a drenar notícias. Ainda não as podia receber ou compreender, por isso a febre. 

 

Ururaruçu tinha muito pouca energia de recepção, menos para transmissão. Seu contato com a aldeia de origem se desfez quando ela nem tinha dois anos. Vendida em troca de alimento, viveu em algumas casas de passagem. Seu corte de cabelo característico e seu olhar, misto de tristeza e desafio, mantiveram predações afastadas. Logo cedo, desenvolveu uma espécie de guincho agudíssimo, terrífico, que punha para correr qualquer malfeitor que tentasse tocar nela.  Destacou-se quando entrou na escola pública. Dona de fluência verbal, coerente, exata, encantou os professores, que tudo fizeram para que Ururaruaçu se desenvolvesse. Decidida, os pretensos adversários se mantinham a distância. Envolver, às vezes, rescendia a tajá. Esse era o cheiro da união entre Fia e Ururaruaçu. Isi sentia a pulsação. Estava sofrendo.

 

Ururaruaçu respeitava profundamente a faculdade que via nascer em Isi. Conhecia pouco os fundamentos das vidências, as fontes arqueológicas que os descreviam. Observava a criança como cientista. Tanto intercâmbio magnético poderia interferir no córtex frontal. Fia entendia a natureza das provas pelas quais as filha passava e confiava. Ururaruaçu viu no fenômeno uma forma de neutralizar um pretenso adversário. Não era ação consciente. Fia, que concentrava sua atenção nos exames, não percebeu com clareza o movimento. A única coisa que lamentava era ter tido a Cabreúva Vermelha, a Mãe-da-Lua e sobretudo Orun como guias tangíveis. Isi só tinha a si própria. Fia nada sabia sobre quem velava pela menina. Os amigos invisíveis, à volta, se mantinham calados e reverentes. A mãe sentia Isi em perigo, porém envolta por força maior. Os amigos conhecidos não tinham autorização para interferir. Era, igual, o tempo de Fia amadurecer como curandeira. Ao que tudo indicava, a inclinação de Isi ainda não se sedimentara. O quarto onde as três índias estavam parecia uma fornalha, cheirava a erva venenosa.

 

Foi naquela tarde que receberam o presente: Janjala deu à luz Clementina. O bebê era saudável. Mãe-do-Raio cuidara do ambiente da enfermaria pessoalmente, para espanto da equipe médica. Viveram horas estranhas, de instrumentos cirúrgicos muito quentes, ar igualmente denso. Um silêncio pesado guardou a sala de parto, tornou os movimentos lentos. Mais tarde, por uns quinze minutos, Janjala gritou como possessa, precisou ser amarrada para não se machucar. Depois do acesso, de vomitar e reclamar de fortes dores de cabeça, pediu para que a soltassem. Mesmo ressabiadas, as enfermeiras obedeceram, era mais forte que elas. O anestesista veio administrar a peridural, mas Janjala não quis. Argumentou que estivera suficientemente drogada, o que não era segredo para a equipe. Banhada em suor, ardendo em febre, acomodou as pernas na maca, firmou as coxas e deixou Clementina passar. Os dentes da preta azul eram tão brancos que ofuscaram o obstetra. E ele não pode ver a reunião de entidades em torno do nascimento, a saudar mãe e filha. Ofereciam-lhes doces, flores, fumos, beberagens de fruta, mingau. Xangô estava entre eles e arengava a vida é tão curta quando a gente vê acabou. Mãe-do-Raio arremedava vai viver, minha filha, vai dançar para Obaluaiê. A Gaia é Mãe, vai saber encaminhar os fumos, os lumes, as águas. As letras tem fogo, cada uma de uma cor. É fazer com elas colar caloroso e doar, doar sentimento para quem chegar. Vai, menina que quase quebrou. Vai, que outras marés virão. Vai embora para Itamaracá, cirandar com Lia, ser merendeira e criar Clementina junto ao mar. 

 

Isi, no sono, viu o parto. Ficou segurando a mão de Amerê, quietinha. Achou curioso um bebê tão grande sair de uma gruta tão pequena. Amerê ficou mais tempo que os outros protetores na enfermaria. Corroborou as falas da Mãe-do-Raio. Janjala falou de João Claro, da falta que sentia dele. Isi disse que o irmão estava bem, crescia direito e tinha uma cota extra de ife, que não se amofinasse. Que ficasse tranquila e fosse ver o mar. Clementina ia gostar disso. Quem sabe, depois, Isi também não esbarrasse por aquelas bandas.

 

Quando Isi despertou, foi para o colo da mãe. Um pouco abatida, porém relaxada. Aproveitou que Ururaruaçu saíra, para dizer a Fia que precisava escrever seus sonhos. Ela os entendia, mas o que pudesse traduzir em palavras seria útil no futuro. Fia não titubeou. Deu-lhe o caderno que ganhara de Dona Tem. Já tinha o diário da abobé para as próprias anotações.

 

 

 



Comentários

Postagens mais visitadas