Vértebra 41
DT11 Onhiamuaçabê, ou o curso
de enfermagem
Fia, mulher feita, roída em sua exuberância. Sorriso adiante, sempre. Sem perguntas, sem respostas. Disposta. O curso técnico lhe deu respiro. Respeito era outra coisa. Há muito não entoava cantigas. Teve saudade da Cabreúva Vermelha, do miolo da mata, do úmido, das minhocas, do som dos sauá. Infância era coisa atravessada, não tinha mais cheiro. Não valia cozer peixe seco para ela. Sonhava, contudo. Então tocava lembrar. Fia olhava a infância de Isi e achava bonito. A juventude era bonita, diversa. Ururaruaçu, irmã de origem, incógnita. O auxilio para João Claro não veio.
Fia deixou a escola regular após falar com a enfermeira chefe Jacinta. Foi aprender os procedimentos de enfermagem no SESI. Passou a estagiar em terra firme, com remuneração cabível, em um posto de saúde integrado ao setor fluvial. O apoio do velho Selim lhe era fundamental. Fia estudava com Ururaruaçu para o ENEM. Assuntos bonitos, incompreensíveis alguns. Em especial os que se referiam a cultura. Muitas revoluções de apelo indígena ela acompanhava, irmãos que participavam de movimentos sociais, de identidade de raça, idoneidade, democracia. Medicina de índio, pajelança. Muita cor, muita pintura na face e cocar. Respeito até, aos doutores da mata e seus herbanários em especial. Exaltação em defesa dos expressadores, através da arte. Aos corajosos, que iam ser pajés e caciques dentro do Planalto. Vozes do Norte. Vozes hidrográficas. Vozes dos veios de ouro, veios de petróleo. Vozes carvoeiras, seringueiras. Calcopirita. Delações flagrantes. Ainda havia muitos assassinatos e estupros, tráfico humano. Armas. Vozes dos irmãos das Américas, em coro. A doença da ganância. A indiferença. A diferença. As toxinas. Tempo de coletores. Tempo de agricultura. As corridas. Tempo de indústria. Minas. Máquinas. Tecnologia. Garimpo. Tempo de contracultura. Onde Fia Ulsu se encaixava? Como explicaria sua jornada com dois filhos? Ao ler suas anotações ao fim dos estudos cotidianos, encontrava lacunas que não seria capaz de preencher. Passava os dedos nos cabelos, esticava o corpo. Respirava. Olhava a Arena. Olhava a novidade da irmã a dormir.
Havia um bom espelho no banheiro, que lhe permitia flagrar a imagem. A descrição de Iracema[1] lhe cabia bem. A índia sabia que o físico era veículo para as ações. Que funcionava mal se não escutasse a razão e o sentimento. O juízo crítico era seu, trouxera da mata, da raiz da árvore que lhe serviu de mãe. Possuir um corpo não distinguia ou premiava. Se alguém se enganasse com tal conceito, amargava, cedo ou tarde. Se pudesse, Fia andava nua. Porque era bom. Como um vagalume na mata, nu com seu lumiar. Agora, Fia era dona de quatro vestidos, dois de viscose. Vestia porque ajudava o coletivo. Ururaruaçu a surpreendeu a estudar-se em pelo. Achou bonito. Pegou a mão da irmã. Pôs sobre os próprios lábios. O cipó prata que crescia na ventarola escorregou pelas costas. As rendas dos cabelos misturaram, os dentes se bateram alguma vez. Um ou outro sorriso. Um gosto de selva e flor amistosa. Um tremor ligeiro. Para Fia, a certeza de que ser irmã era tudo e era só. A escova de cabelos era de madeira comum. Os fios pretos brilharam.
A nova ordem da casa dava a Fia tempo. O tempo de João Claro. Dois dias úteis inteiros. Às vezes descia para a calçada, o menino em um embrulho de malha trançado diante do peito. Seguia em linha reta pela avenida, por quatro quilômetros ou mais. Nessas andanças, detinha Ara, espaço de beleza. Inventava algum. Obtinha notícias trans aéreas reticentes. Ficar sem o rio de origem e sem pescar era como sirenes, o alerta agudo dos bombeiros. O menino parecia pouco vivo. Fia parava em algum ponto do caminho, olhava demorado aqueles olhinhos que não se encontravam com os seus. Mesmo assim, João Claro estava ali, pelo calor. Provocava a serenidade das borboletas a beijar flores. Naquele caso especifico, o menino borboleta não operava polinização. Não havia troca, tampouco o ato de sugar lhe interessava. Fia perguntou sem som está cansado de viver, luzeiro? Nessa hora ele olhou, bem triste. Era saudade, das que Fia não alimentava. O que posso fazer para você melhorar? O que podemos fazer para que seus voos deem flor?
A família se mudou para um apartamento maior, de onde também se podia ver a Arena. Por um período, Pedro Kamambi aceitou morar nesse lugar com Ceição, um quarto só para eles. Para chegar à tecelagem, o endereço era mais perto que a palafita em Cidade de Deus. Para Jovino, o arranjo era muito bom. Criaram uma sala de uso comum e se ajeitaram para dormir com espaço. Catira dividia um deles com Ururaruaçu. Isi, Fia e João Claro outro, Jovino, no menorzinho. Quando Selim e Mayara voltassem para casa, até se poderia fazer uma sala de estudo e música.
Mayara permanecia distante do neto e de si. Suspirava pelos cantos. Não tocava no menino. Se o fizesse, atacava-lhe a gastrite. Selim tinha o peso dos tapetes nas costas, mas pelo menos fazia festa, era companheiro do garotinho. Saia com João Claro amarrado ao peito, o que causava frenesi nas senhoras pela rua. Bons momentos para a criança, que recebia atenção, solidariedade e a segurança do homem amigo. Foi o primeiro nome que o bebê pronunciou, Ala. Também cantarolava pedacinhos da viajera del rio[2], uma conversa particular entre avô e afilhado.
O velho Selim, que tinha afeição por Mayara, sabia que aquela alegria das férias não poderia durar muito. Mais uns dias e voltariam para o rancho, senão a cantante murcharia de vez. Catira vinha conversando com o patrão, de ficar mais um tempo em Manaus. Pelas crianças, dizia. Selim compreendia as ciumeiras. Achava digna a renúncia da senhora. Ponderou e fez o que era melhor para todos.
A manhã estava fresca e ensolarada. Selim viu aquela portinha colorida. Lembrou-se da primeira loja de tapetes que abriu. Jade, um turco peculiar, firmara o ponto perto da Arena. Ali ele vendia artigos juntados de algumas índias, que preferiam fazer negócio com ele a perambular com as crias pelas ruas, a mercê da polícia. Tudo regulamentado, impostos em dia. Foi um contato simples e durável que se estabeleceu entre os patrícios. Jade baixou a porta pelas onze horas e convidou o velho Selim para almoçar. Falaram sobre a Turquia, sobre os turcos do Brasil e das Américas. Sobre eles serem turcos, sobre a escolha de Jade. A transparência era tanta que Selim, ao final desse primeiro contato, propôs negócio: que Jade ajudasse Fia com João Claro, cuidasse dele em alguns períodos, para que a moça pudesse prestar vestibular no final daquele ano. Três tardes na semana, Jade passou a levar João Claro a um centro de apoio a crianças com desenvolvimento limitado. De Selim, recebeu um primeiro lote de tapetes. O negócio prometia.
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