Vértebra 40
Rio Madeira - Amazonas - Brasil
DT12, o Trasno, ou Trás-os-Montes
Se o duende pensava ver Portugal e Espanha um dia, precisaria esperar. Perdera as horas de mexer aquela sacola de juta. Não fora capaz, na noite da bebedeira, de aturar o amigo de infância a beijar seu agressor com gosto. Não que se importasse de fato. Óbvio que o tolo gemeu, o afrangalhado, o paneleiro. Expressão muito da cabível para quem faz de conta que é martírio. Triste visão bestial. O trasno se certificou de que aquele tranco acabava com sono e furto dos pedrilhos rosados da abobé. Dito e feito. Emborcado um, rufião outro. Então, o duende partiu na direção oposta ao Yorimã. Sentimos muito, toda história está assentada nas vértebras anteriores, não se trata de conto de agora. Nem Yauaretê em pessoa obrigaria ao trasno catar pedaços de miséria. Foi-se, deixou Aín para trás. Seu tamanho diminuto permitiu ocultar-se sob arbustos, folhagens. Também sabia balançar no cipoal e com isso teve os sauá como companheiros de folguedo pelo trajeto. Foi assuntando, aqui e acolá, como chegar a Trás-os-Montes. Nenhum ser das bandas da Amazônia conhecia o lugar, exceto umas gaivotas que erravam por aqueles céus e já estavam de partida. O trasno quis ir com elas, mas uma espécie de parede intransponível o reteve às margens do Rio Madeira.
O barco se chamava Igaraçu. Era força tarefa da Unidade Básica de Saúde Fluvial. Foi ali, a lavar a sala do dentista, que o trasno o reencontrou e teve pena, ou qualquer coisa assim. Possuidor de luneta para os porões humanos, o duende soube que aquele parvo tinha umas saudades trágicas, as quais não seria capaz de curar, nem com toda lavação que fizesse. Era um midas às avessas o seu protegido. O ser dos bosques, resmungão, descobriu mais. Que o infeliz do frei levava mais uma culpa, mais um furto até suave no lombo. Dentro da sacola de juta, que Aín carregava junto ao corpo, dormia a carta destinada ao bispo de Pernambuco.
A novidade agora era aquele jovem, aparição com uma ferida aberta no peito, a verter sangue. O trasno teve cuidado e lhe tocou o ombro. Yin-Yin deu um gritinho e riu. Logo em seguida, voltou ao estado taciturno que lhe distinguia e repetiu procuro minha mãe[1], ela guardava este perdido. Lo siento niño, pero esto es otro sitio. Tienes un cigarrillo, perguntou o trasno. Yin-Yin não pode deixar de sorrir e sentir-se melhor. Alguém aceitava falar com ele, depois de tanto tempo. O trasno ponderou que ficar novamente em companhia do frei não parecia amolação. Ao contrário. A barca estava cheia de almas pagãs, pândegas umas, tristonhas outras, um enxame de aflitos à cata de cheiro de éter, morfina ou o que anulasse um pouco as dores que todos sentiam. Teria conversa para jogar fora ao menos. No meio dessa gente havia lumeeiras sentinelas, a distribuir água. Até o trasno ganhou sua porção e a vontade de olhar o mar de Vigo abriu-se como um sol após tormenta.
Yin-Yin contou que ficava por aquelas veredas por pouco tempo. Uma força maior do que todo conhecimento o puxava novamente ao Vale[2]. Ele fugia, ou apelava aos deuses da mãe. Vuelveré siempre al Vale, siempre al Vale. Uma senhora de manto azul, que lembrava la avuela, já o havia convidado a ir para outra parte, mas aquele estilo rebelde e bravio parecia bom. O rapaz não incomodava ninguém, ficava só e isso era remédio. Yin-Yin perguntou ao trasno se eles poderiam ser amigos. O trasno não soube responder. Antecipou, isto sim, as sirenes do Vale, que já se faziam ouvir. Acovardou-se com o som e sumiu dentro da sacola de juta.
Quando Yin-Yin foi levado, o trasno percebeu que não estava ali por nada. Aín corria perigo. Por hora, os erros que cometera tinham sido praticamente inofensivos. De agora em diante, o frei atraia para si o submundo, o conteúdo debaixo do lodo. Era preciso para-lo, antes que coisas piores ocorressem.
Fia, após as aulas de enfermagem daquela noite, na caminhada para casa junto com Ceição, falou de tudo. Do carinho por ajudar as gentes, das habilidades com as mãos, de Isi. Quando foi falar de João Claro, embargou-se. Com ele, as bolas de suas mãos surtiam muito pouco efeito. O pequeno não tinha dores fortes, mas sua jornada seria muito simples, limitada a onde lhe pusessem. Não sabia como dar ao menino melhores condições. Falou de si, de todas as chances que teve até o momento, verdadeira revolução. Ceição disse que ela precisava se orgulhar, era guerreira. Perguntou se Fia se arrependia de ter trazido o menino. Ao contrário, ele é um jardim, para todos nós. O que me enche d’água, Fia continuou, é o curumim só ter o janelão como horizonte. Ceição sugeriu que fossem, no dia seguinte, falar com a orientadora Jacinta. Ela era compreensiva, escutava todo tipo de queixume, quem sabe tivesse uma saída. Quem lhes abriu a porta, quando chegaram em casa, foi Catira.
A senhora já dera jeito no espaço, instalara o velho Selim e Mayara no quarto que nem era usado. O homem havia mandado vir três camas, duas mesinha, três poltronas, biombo, abajur, tapete. Acomodaram-se bem, ele e a amiga. Catira se arranjou no quarto de Janjala. As crianças estavam bem. João Claro a brincar com Isi na rede, quase a pegar no sono sobre a menina. Jovino escrevia uma singela serenata, sobre a flor do lisianto que um menino deu a sua irmã. A vizinhança não ralhava com a música noite adentro. Era suave, fazia bem. Os vizinhos próximos até desligavam a TV, gostavam de escutar. Ururaruaçu estudava na mesa de jantar.
Já beirava a madrugada. Mãe-da-Lua à janela, seu cabelo prateado a ondular até o primeiro piso. Isi, de onde estava, sorria para ela e bebia da sua canção cheia de unguento. No vai e vem dos tons, feito a sinuosidade do Rio Amazonas, pode escutar um outro murmúrio, monótono. Era como receber, nas ondas curtas do rádio, a frequência difusa de posta restante. Isi logo entendeu que era o cão da outra noite, com notícias. Seus cipós compuseram a ferida do índio, contou o animal. Ainda erravam, o Yorimã e ele, pela mata, a pular janelas aqui e ali para comer. Em breve, disse Kiru, ele viria visitar.
Mãe-da-Lua clareou na cabeça de Isi. Mostrou cavernas de milhares de anos, cheias de mãos pintadas a urucum. Mostrou cenas de caça, pintadas com carvão. Mostrou mulheres a fazer tinta vermelha, marrom, amarela, balaios e poções. Sopravam o fogo verde, secavam o barro das bilhas, das cuias. Bebês às costas, dormindo. Um calor escuro, o uivo dos lobos guará, o abraço da suaçuboia ao cipoal. Dois irmãos eram os donos dessas mulheres. Tinham saído para pescar. Eram homens-peixe. Havia dois outros, rivais, que queriam roubar as crianças, magoar as mulheres. Um curumim da caverna, que tinha sede de saber, foi escutar a trama dos dois. Teve a coragem das cachoeiras e despencou sobre eles, para defender as mães. Quando surpreendidos, os índios escarneceram do menino e lançaram feitiços de veneno, para matar. Nasceu ali o primeiro desejo de vingança. O menino morto foi separado em partes pelas mães e semeado no solo, do lado de fora da caverna. Foi regado com muitas lágrimas. De um dos pedaços cresceu o titim. De outro, brotou o cipó prata. E ficou assim. As mães tinham feito mais meninos com sede. Eles ficavam com sede assim que não cabiam mais nos balaios. Sucuri-Pacu era um deles, pressuroso. Foi atrás dos feiticeiros que, os sauá contaram, tinham inventado o primeiro filete de rio. Caminhou pela beira até encontrar a oca da tiquera. Ela quis agradar com segundas intenções e lhe deu um filhote de onça. Sucuri-Pacu recusou, educado. Dá-lhe feitiço. O curumim voltou enjoado para a caverna. Um dos donos das mulheres estava lá, viu que era água parada no ventre e sabia onde encontrar antídoto. Mandou Sucuri-Pacu de volta à oca, para falar com Jeju, o índio rancor. Mesmo temeroso, o menino queria ser guerreiro, foi. A pajelança, coisa simples, feita a três toques de maracá. A barriga do curumim ficou inchada até estourar. Dali brotou tanto, tanto líquido. Parece que entrara água ruim e saia água boa, a ponto de encher um grande pedaço de terra, inundar tudo. A vingança tinha nascido, todos sabiam, e não ia se fazer de rogada. Foi criando escaramuças na beira, desvãos, vaus, até que as castanheiras nasceram, filhas de dois olhos arrancados a outro índio. Com os olhos, foram plantados também os canais lacrimais, que vertem lágrimas todo tempo, para lavar a floresta pulmão da Gaia. Tupã permitia, tinha lá suas razões. Gente virou pássaro, pedaço virou guaraná, gente virou o dobro, pedaço virou lama, gente virou cobra e dobra do rio. E há quem não acredite em psicomorfismo, mesmo no brilho da Celene.
Quando Uraci apontou atrás da Arena, Mãe-da-Lua acenou e foi dormir. Era manhã de domingo. Família grande, encontro para saudar Tupã.
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