Vértebra 39




Dl1, descaminho do caminho ou Cachoeira do Eldorado

 

No dia em que entregou seu último trabalho escolar a Dona Tem, Xaxim Verdadeiro recebeu dela um livro. As páginas estavam em branco. A professora sugeriu que a índia mantivesse as folhas recém redigidas, aquelas com os seus vinte e um saberes, dobradas  dentro do presente. Naquele texto havia mudas para um belo pé de araçá, metáfora do roteiro. 

 

Aquele presente era como um berçário, uma incubadora. Dona Tem pediu a Byr para não ter pressa. Valeria reler o trabalho muitas vezes, a cada visita anotar um dado novo. Era um projeto, para ter em mãos, expressão individual para o coletivo, era do que Fia dispunha. A índia saberia a hora e o lugar de o desenvolver e divulgar.

 

Diante dos janelões do apartamento em Manaus, Fia apreciava a noite e pensava na professora. Que era dela? Claro que ainda trabalhava na escola, mas o que mais? Já lhe escrevera várias mensagens, pedindo a Dona Tem que viesse morar na capital. A professora respondia que tinha preguiça de se espichar, que Byr tinha a própria vida para tocar em frente. Xaxim Verdadeiro sentia que a Professora Temístocles esperava por algo, por alguém. Pois, se tal espera era engodo. 

 

Tijuca, o índio dos destroços, estragara as portas da viatura dos bombeiros e sumira no mundo. Fia omitiu tal notícia, machucaria dona Tem além da conta. Voltando-se para o interior da sala, a moça deu com alguns livros que deixava ao lado da sua rede e murmurou: os romances lerdeiam. 

 

Manaus era corajosa. Chovia. Na Arena, bulha do Caprichoso novamente, fogos de artificio. Espetáculo bom de se ver, vindo de Parintins. As crianças, que haviam andado de bicicleta durante a tarde, que cuidaram de João Claro e fizeram música, nem se importaram com os estouros, dormiam um sono só. 

 

É preciso contar sobre a chegada de Pedro Kambami. Seus pais vieram fugidos de Angola para o Brasil, foram empregados da tecelagem por muitos anos e ele cresceu em chão de fábrica, a por tufos de algodão nas máquinas. Mais tarde, especializou-se na confecção de malhas. Era chefe de Ceição. Entre os dois, foi-se enredando mais que camaradagem. Logo o rapaz passou a fazer parte da comunidade, a visitar o apartamento. Foi bem acolhido, fazia bem para Ceição, era o que importava.  

 

A tristeza de Jovino buliu no coração de Pedro Kambami. Ele não tocava viola tão bem quanto o menino, mas até essa desvantagem os aproximou mais. Ficavam juntos todo domingo, para alegria de Ceição. A voz grave e melodiosa de Pedro Kambami tornava tudo louvável. Jovino ia lhe mostrando as técnicas que aprendera no conservatório, explicava as partituras de um jeito apaixonado e dividia com o namorado da mãe os predicados da música além da audição. Para Pedro Kambami, a partilha tornou-se uma forma de amar, ele que sempre quis a paternidade. Jovino foi, com vagar, confiando no moço, aceitando-lhe o afeto. Crescia também a certeza de que o rapazito, com as violas de arame, seguiria profissão. 

 

Jovino ganhara do velho Selim um baixolão e uma rabeca, que aprendia a tocar com empenho. Escutava gravações dos mestres e ia tirando de ouvido as linhas dos instrumentos. No conservatório, estava matriculado nas classes de corda dedilhada, teoria musical e harmonia. 


Para melhorar as coisas, quem deu mostras de querer tocar um instrumento musical foi Isi. A criança encantou-se pela rabeca. Em breve, a menina tirava um som adocicado, melodioso. O primeiro tema que aprendeu foi o contracanto do Tambatajá[1].

 

Xaxim Verdadeiro teve a companhia dos filhos à barca hospital por dois dias. A saúde de Janjala pedia cuidados ambulatoriais. Habituadas a serem solidárias com todos, as crianças acharam boa solução para passar o tempo. Planejaram um pequeno recital. Devidamente autorizados pelo capitão, Isi e Jovino, com suas canções, ergueram o moral da equipe de saúde. Os pacientes nunca tinham vivido aquela experiência. Eram tempos bonitos. Os pequenos músicos ganharam frutas em paga pelas récitas. No segundo dia, Pedro Kambami deu-se folga na confecção e foi tocar com as crianças. João Claro, tão pequeno, passou os dias no balaio, ao lado dos irmãos. Byr confiava naquele convívio. Podia fazer suas suturas sossegada. 

 

A enfermeira chefe, Jacinta, poupou Fia dos baldes e vassouras nesse período. Estava na hora de mostrar à índia novos segredos da profissão de enfermeira. Os novos arranjos poderiam dar norte a quem demonstrava aptidão para o trabalho. Enquanto isso, música e infância saudável brincavam com o Rio Negro. Eram tempos bonitos.

 

Quanto mais se ajuda, mais oportunidades de ajuda aparecem. Era a voz do velho Selim a rondar a memória de Xaxim Verdadeiro. Também no segundo dia em companhia das crianças na barca, um novo par de mãos surgiu: Iururaruaçu. A caingangue era estudante de medicina e voluntária dos Médicos sem Fronteira. Se tudo corresse a contento, seria a primeira médica indígena a se formar pela UFAM. Em uma das breves folgas no turno, a moça ajudou a limpar João Claro. Também exercitou-lhe os músculos cardiorrespiratórios. Foi Iururaruaçu quem deu a colher ao bebê e o estimulou a comer sozinho. Testou seus reflexos, visão, audição, força. Espantou a melancolia que amuava o menino. 


Ao se despedirem, boca da noite, Byr, encantada, perguntou à futura médica onde ela morava. Iururaruaçu apontou uma barraca precária não longe da margem. Bastou para que o convite fosse feito e aceito. A família ficou com Iururaruaçu até que ela arrumasse os poucos pertences. A cabana ficou na margem, poderia servir de casa a um precisado. O grupo seguiu caminhando em direção ao apartamento. Alternavam o serviço de carregar criança, mochilas, empurrar bicicleta, cases. Um companheirismo luminoso nascia.

 

Ao chegarem em casa, Ceição tinha a mesa posta. Era a comemoração do noivado com Pedro Kambami. Eles iriam morar em uma palafita, em Cidade de Deus.O horizonte, da janela do apartamento, chamava Amerê. 

 

Fia, ao olhar os fogos de artifício na Arena, agradeceu pelas oportunidades e também pelo desafio das mudanças. Todos dormiam, Ururaruaçu, a nova pessoa, entre eles. Fazia tempo que o Tamõi amerê não falava com Xaxim Verdadeiro, é que Janjala precisava mais dele agora, estava para dar à luz. 

 

O companheiro de Janjala, Amaro, se transformou em cometa para a menina preta azul. Lembrou a Byr o frei que, lá na mata do Eirú, a desposou. O barqueiro namorou por um tempo, até falou em casamento. Janjala parecia voar. Tinha descuidado da casa e de João Claro. Em um fim de expediente, Amaro foi tocaiado por dois malfeitores e assassinado a queima roupa. Acerto de contas. O rapaz partiu sem saber que seria pai. Janjala precisou ser internada em uma clínica para transtornos mentais por dois meses. Sofreu uma série de convulsões epileptoides, quase perdeu a cria. 

 

Em função da urgência, Fia convocou o velho Selim, Mayara e Catira. Eles aceitaram passar uma temporada na capital.

 



[1] Tema do compositor brasileiro Valdemar Henrique

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