Vértebra 38



Dl2 Pico da Neblina, Amazonas

 

A lua cheia apareceu no céu. Refletiu o roxo do lisianto ao sol. Um espelho, incandescente, brilhou o branco do olhar da Gaia. Lua, generosa, abriu seu cordel e trovou a história de um rapaz de bem. O moço cruzou os sete mares sem vintém à procura da lua, que era só doar-se. Lua, prestimosa, deu-lhe clarão, acudiu o moço em sua ilusão. Desdobrou o tempo, vela, talento. Regou o rio a prata, argilou a trama, trançou o coração, abrandou o saber. Devolveu ao moço a bandeira de divinação.

 

Frei Aín repousava, acostado ao banco da sacristia. Um diácono dera o primeiro socorro, através da água magnetizada, misturada a algumas gotas de vinho. O Evangelho de Marcos foi recitado, bem na parte em que descreve a cura do possesso. Depois, foram lidos também os salmos vinte e dois e vinte e três. 

 

A sensação do homem era de afogadiço à beira da praia. Onde estivera Aín? Quem perdoaria o tempo que ele perdeu vadeando? Por que insistia em permanecer sozinho, perdido, a mercê de bordunas e mãos danosas, isso para não confessar outros encontros ultrajantes? A gratidão estava perto. Acenava com o dono do posto, com o pastor e a esposa dele, com o religioso que o assistia, todos amáveis. Logo, o nó na garganta do frei foi cedendo. Aín olhou para o diácono, emocionado. Era quase menino e tão meigo. O frei caído ergue-se, deu alguns passos pelo lugar, olhou a estante do pároco e bateu os olhos em um livro de poemas. Pediu permissão, o diácono autorizou. Aín abriu o volume e tremeu: “não lhe posso gritar, não lhe posso seguir/Sua barca empurra, um negro vento de tempestade./Retorna-lo a meus braços ou lhe ceifas em flor”[1]. Eram falas que ele sentia, profundamente entranhadas. Chorou abraçado ao livro e neste momento D. Ildo pôs a cabeça para dentro da sala, bem humorado. 

 

Acostumado às arengas das beatas, D. Ildo imaginou que uma delas se lamuriava com o jovem diácono, a nova atração feminil da arquidiocese. Mal sabiam elas que o rapaz tinha o casamento com bela jovem marcado para dali a dez dias. Quando deu com Aín aos prantos, o padre recompôs-se. Franco, de bem com a religiosidade, o padre já foi dizendo coragem meu filho, não dê as costas para o Senhor que tudo vê e a todos consola. A voz, o tom, o sorriso, logo Aín voltou a um estado mais lúcido. Pediu para confessar-se, como não fizera com Cláudio. D. Ildo pôs sua estola e ficou ali mesmo, em pé ao lado do novilho. Escutou a história toda, desde os tempos de Espanha. Quando Aín falou, ao final, do anjo triste que o acompanhava, de como sofria, o padre fez o sinal da cruz, entoou uma prece pelas almas a vagar sem rumo. D. Ildo segurou Aín pelos ombros e o chacoalhou brandamente. Meu filho, está na hora de voltar para a igreja. Os tempos são difíceis, as artimanhas do lucifér atuam por toda parte. Você já se queimou o que chegue. Volte para os braços de Santo Antônio, para o colo da Virgem Mãe. Volte para a luz, meu filho. 

 

Enquanto Aín apaziguava o coração, diante da imagem do santo de devoção, já na nave da paróquia, D. Ildo redigiu uma carta breve ao bispo em Pernambuco. Bem quisto na Arquidiocese, não foi difícil conseguir uma passagem de avião para o Recife, onde ficava o convento em que Aín se fez frei.

 

Naquela noite, abraçado ao livro da Alcayaga, ao Evangelho e à passagem de avião, Aín dormiu pela última vez na comunidade que o acolhera. Despertou antes do alvorecer, deixou o espaço que lhe foi cedido imacaulado. Despediu-se do pastor e da esposa com gratidão, recusando o desjejum com muita educação. Ficou no aguardo do início de expediente, diante da agência de viagens. Mentiu que havia ganhado o prêmio em uma quermesse, por razão lá dele, vergonha de falar de D. Ildo. Falou de um irmão que cometera suicídio, da mãe que sofria em Eirunepé e do dinheiro de que precisava ir para visita-la. Tão comovente e convincente foi, que obteve o valor total da passagem, bem como o coração da atendente. Pobre mulher pueril. 

 

Aín levava, por mérito, a bicicleta do pastor, a valise e os pertences pessoais que recebeu. Se olhassem sua íris, haveriam de saber que ele não era má pessoa. Respondia a mais um ímpeto alucinado, para pena de D.Ildo. Embrenhou-se por estradas secundárias e pedalou, em direção ao Pico da Neblina. Os atalhos que tomou o fizeram dar no bairro Cidade de Deus, Manaus. 

 

Acabara de vagar uma palafita por aqueles dias. O aluguel era em conta e Aín pode adiantar o primeiro mês. As perguntas de antes, sobre tempo perdido voltavam, como as sujidades a boiar no rio. O dinheiro que tinha daria para algum alimento por mais dois dias. Ofereceu-se, na comunidade, para remendar casas, levar água do cano, entregar compras em troca de comida. Até para cuidar de crianças se prestou. Soube, pouco depois, que havia teste para faxineiro no Distrito de Saúde Fluvial.

 



[1] Sonetos da morte, Gabriela Mistral

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