Vértebra 37
Dl3, a orientação – Manaus Barcelos – expedição Serra do Aracá
Isi, aos seis, quase sete anos, sabia muitas coisas. Diferente da mãe, Xaxim Verdadeiro, que era solar, a pequena dos cabelos fortes recebia visitas noturnas, o cipoal que lhe deu nome como cortinado. Vinham trasnos, poetas, cachorros, seriemas, mãe-da-lua, ararinhas, jacarandás falantes e muito assunto para delegar. A criança despertava cansada. Mesmo com tanto trabalho madrugada adentro, a alegria era a expressão mais íntima dessa menina.
No dia em que seu pai, Tijuca, fugiu e embrenhou-se pelo Bairro Flores[1], um ferimento no lado direito do ventre, Isi recebeu a visita de um cão de pelo curto, todo preto, de nome Kiru. Eram três da madrugada. O bicho lhe contou a história de um índio errante, espetado no fígado. Ele procurava Uraci sem achar. Para se vingar de tanto escuro a sua volta, tinha o feio costume de zurzir gente. Era ele ficar inflamado, lá vinha: mão fechada, mão aberta, mão em concha, mão cravada, mão espalmada, mão em riste. Dedos que capinavam línguas, olhos e outras partes moles dos corpos alheios. Dedos intrometidos, devastadores. A trilha sonora daquele yorimã era um canto tenebre. Tanto Tijuca surrava, que suas mãos eram pântanos de sangue e excremento. O cão, humilde e amigo, pediu à criança que oferecesse um seu cipó. Um fio de cabelo, para amarrar a ferida infeccionada do índio. Isi avisou que sua mãe era mais potente, que curava tudo. Kiru contrargumentou, só um cipó do coração teria poder nesse caso. O tratamento permitiria que, finalmente, nascesse vitória régia no mangal daquele guerreiro descambado. Devidamente autorizado, Kiru puxou um fio e mais dois, garantia de um arremate direito para a ferida.
Fia chamou, chamou, sacudiu e Isi se recusava a despertar. Foi Jovino quem conseguiu trazer a criança de volta. Isi agarrou-se ao pescoço do violeiro e ali ficou, cheia de febre. Foi assim que ambos chegaram ao barco ambulatório, levados por Fia, emboletados na bicicleta. Um antitérmico, um pouco de olhar o Rio Negro e logo o mal-estar de Isi deu voltas na grande nau branca e azul que desceria a ribeira, para atender a quatro comunidades naquele dia. Era a Manaus Barcelos. A Mãe-do-Raio andava perto. Fia seguiu com outros atendimentos ao público e Jovino, que perdera as aulas, ninava a pequenina, também ele a olhar o rio. Um aperto em seu peito, um filete de desdobramento. Isi acordava delirante, firmava os cabelos na curva do pescoço amigo. Fios e carótida em transfusão. Estafante tarefa, mas o rapaz e a menina eram sementes, muito havia de germinar e crescer daquele encontro. Jovino, ao contato com a pele cálida de sua irmã do coração, viu todos os personagens de sua meninice, também os da indiazinha encipoada. Não perguntou ou se assustou. Foi apertando a mão a cada um, pelo menos uma dúzia de deidades, foi assim que interpretou a visualização, em seu pouco entender. Uma mulher prateada, muito parecida com Fia, segredou que logo Heloana iria habitar em uma estrela distante. Por isso esfumava. Que Jovino a deixasse ir, sem chorar, sem doer. Poderia cumprimenta-la em todas as noites límpidas. Mãe-da-lua mostrou no céu o ponto exato de a ver e ainda era pela tarde quando o fez. Quanto ao amigo Betinho, este arreliava, queria ir com Heloana, porém estava predestinado a embarcar em um voo para a Serra do Acará, onde o povo precisava de um protetor novo. Enfim, a transfusão cessou. Fia encontrou as duas crianças a dormir serenamente, enroscadas na proa da embarcação. À noite, ela também não iria estudar, precisava amparar aqueles dois, dar norte a tanto olhar dentro.
Quando voltaram ao apartamento, Janjala ninava João Claro, também ele febril. Ceição, a contragosto, foi fazer prova e marcar segunda chamada para Fia. A fiandeira confiava em Jovino, sabia que o rapaz tinha âncora e olharia por todos. Fia montou uma tenda na sala e acomodou as crianças. Jovino pediu a ela que contasse a história da criação do Rio Amazonas, queria compor uma moda de viola. O enredo ofereceu mote e foi possível a Fia falar das forças que moravam no visível e no invisível. Que eram eletricidades, que faziam andar, se arrastar, seguir em frente. Energias que ajudavam a nascer, a dar fruto e a partir. Vingança era feito índio-peixe. Já não era mais pensar em índio bicho, mas em gente floresta. O rio precisava de gente e gente do rio. Um dia viria rabo de estrela e puxaria gente pra morar lá no céu, onde o rio chora. Feitiço mau, empenhado, só atrasa o compromisso de Tupã. Jovino teria parte com as mãos e os cabelos de Isi, instrumentos de sutura. Não deveriam, nenhum deles dois, espalhar impressões ao vento. Que guardassem para si, falassem só com Janjala, que tem linha direta com a Mãe-do-Raio. Que se aconselhassem com o travesseiro, nobre guardador de sonhos, para poder mergulhar nesse macio enleio, perscrutar memórias e tomar boas decisões adiante.
Fia não dormiu, a noite seria longa. Foi buscar um demorado entendimento com Amerê. Trataram da educação dos familiares, de suas vocações. Era uma pequena comunidade de curandeiros, logo ficou nítido. Para Fia, o caminho se abria na barca. Para Isi era cedo, ela precisava alinhar com o cipoal, valeria aprender a tecer rede de pesca. Para Jovino, um dos caminhos, a música. Para João Claro, despedir-se. Para Ceição, máquina de costura. Para Janjala, parir.
Janjala, pela manhã, veio das compras com um folheto. O endereço da reunião. Tratava-se de um espaço de cura, das aflições de dentro e fora do corpo somático. A moça pretazul perguntou a Ceição se podia ir conhecer. Foi. Encontrou Amaro. Olhar e encanto. O moço, durante o dia, chefiava expedições pelo rio, para turistas, às vezes pesquisadores. À noite, frequentava a Casa, na Cipó Alho.
Tudo dentro dos conformes, tudo transitório. O casal novo não contou a novidade a João Claro. O menino era tão pequeno que esqueceram do seu sentir, do seu radar. Havia coisas naquele mundo pequenino que escapavam ao olhar dos familiares, por mais amoráveis fossem. Podiam até descuidar, mas Isi estava lá, corrente de âncora. Mais uma febre alta se fez necessária. Assim era a reação a algumas visitas de sonho. Vieram a mãe e o pai de João Claro, alvoroçados. Fazia tempos a Indiara não mandava notícias e Maverick ficara Icuamã, feição afilada, amarela.
Para Isi, era tempo do primeiro ciclo no colégio. Ela vinha tecendo um cocar e se preparava para cantar a lenda de Ocumató e Onhiamuaçabê. Sentada na coxia do teatrinho, estava concentrada. De repente aquietou, fechou os olhos e começou a tremer. A professora acudiu, achou que era convulsão. Baixaram-lhe a temperatura com banho e dipirona. Quando Fia chegou para buscar a menina, recebeu-a desacordada nos braços. Sem alarde, deixou a bicicleta no pátio da escola e tomou um carro para casa. Sabia que não era caso de hospital. A filha no jirau, Xaxim Verdadeiro invocou Amerê. Uma jornada como a que se apresentava para Isi precisava de apoio e bom treinamento. Ao invés de Amerê, a visita foi de Ubiratã, aquela entidade tão elegante. Ele veio na condição de médico sem fronteira, examinou a menina e explicou que viera socorro para João Claro, Isi como mediadora. Fora difícil suportar a intimidação dos pais, eles estavam por demais aflitos. Ubiratã moveu seus braços em diagonais concêntricas por um tempo sobre Isi, o ar ficou leve, enluarado, logo a pequena despertou, restabelecida. Ubiratã tranquilizou mãe e filha, estaria sempre por perto
Isi contou à mãe que a Indiara estava em uma cama cheia de hibiscos. Que os olhos dela vertiam leite de peito. Que tinha vontade de estender os braços para o filho, mas o balaio estava longe, longe. Doía vê-la sozinha, deu vontade de ir lá deitar sobre ela. Isi soluçava ao narrar o sonho, mal conseguindo balbuciar as frases.
Jovino, presente durante a visita de Ubiratã, que apenas percebeu sem ver, foi inspirado pelo sofrimento tão punhal e pôs-se a tocar a peleja da seriema com a cobra[2], transferindo o pranto para as cordas. Xaxim Verdadeiro, que acostara a menina no estrado, amparou-a com travesseiros. O Ubiratã instruiu e Byr tirou João Claro do balaio, colocou o bebê no colo da filha e esparramou os cabelos da menina. Jovino parou de tocar, ficaram as vibrações do último acorde. Uma brisa suave entrava pelo janelão e a torcida comemorou um gol na Arena. Xaxim Verdadeiro teve vontade de esquecer todas as alcunhas casulo, nem Xaxim Verdadeiro, nem Byr, nem Fia.
1 Bairro da cidade de Manaus, AM
2 Composição de Roberto Correia
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