Vértebra 36



Dl4, manaós ou o fluxo

 

Manaós. Nos muros das cidades vão-se grafitando rostos. Diferentes, expressivos, fonte de estudo e comoção. São as vestes de gentes dobradas, viventes narcisos, sofrentes alados, em fluxo. Nos muros das cidades o penacho, o verde lilás e a fome de luz. Um comedimento entre a chuva e a absolvição.

 

Ao dar por si confinado no carro do corpo de bombeiros, Tijuca retomou sua onça por preciso instante. Uma única expressão da perna esquerda e a porta se abriu em duas. O sinaleiro ajudou-o a cair em pé. Conteve o ferimento com um abraço e embrenhou-se por uma alameda que terminava em capão. Ninguém o seguiu. Agachou-se, rente a um palmital. Os gemidos, engoliu a soco. O índio não esperava nada. Só queria morrer em paz. Do jeito que foi possível, enrolou-se sobre si e deixou o torpor o levar longe, para uma noite de tempestade. Alisar era muito bom e a menina sabia fazer. Ele lembrou das mãos, que criavam uma corrente, de luz, de choque, de calor, aquosa. Era especialmente bom quando elas paravam sobre o coração, ou envolviam os pulmões, ou refrescavam o topo da cabeça, sempre em chamas. Quando pegavam cada pé, sensação de verme a chupar as coisas sórdidas. Por que malhava a menina? Ela recebia os petardos quieta, terna, os olhos cheios de aluvião. Até dava espaço, para sangrar mais. Enfim, uma eletrocussão o demolia no último sopapo e a menina ainda o alisava com tal doçura que às vezes lhe provocava lanço. Aliviado dos azedumes, dormiu um quadrante de tempo. Despertou noite fechada, chuva rio a lhe refrescar dentro. Um cão todo preto vigiava a seu lado. Pelo rente, mais para felino. Olhos lanterna, atentos. O animal havia dispersado um formigueiro. Mesmo assim, Tijuca fora mordido em vários pedaços de seu atarantado corpo. O ferimento, lavado pela saliva do cachorro, tudo para gangrenar ou sarar de vez. O índio esforçou-se por aprumar e aceitou a companhia. Um ao lado do outro, seguiram pelo bairro. Janela aberta entraria, acharia de comer. Não custou muito. Era uma de fundo. Experiente, Tijuca juntou em um avental um pão inteiro, um salame, um pedaço de assado, duas bananas e uma garrafa de cerveja. Antes de ir, quebrou quatro ovos direto na boca. Dividiu a refeição com o companheiro, já do lado de fora. 

 

Entrar na mata, como estava. Foi-se. Lavava-se no rio até perder toda dor. A parceria era como sal. Deu destaque à paisagem, à estação, ao estado de coisas. Sentado em um barranco, o cão ao lado, olhavam os dois adiante. Os bichos luminosos a lhes passar mensagens, informar as condições, as possibilidades. Desde que fora surrupiado em seus diamantes, Tijuca perdera o tino. Apesar de intuir que riqueza vem, riqueza vai e que de nada vale se não se tem mérito, Tijuca era palácio, carro bom, uma casa de meretrício onde reinasse, sua tribo de amazonas submissas e fiéis. Naquela hora fugidia da madrugada, os raios aqui e ali anunciando monção, Tijuca era tijuco, vazado, o lodo brilhava, tinha razão de ser. Ao dar o beijo naquele frei indolente e bêbado, e o beijou como teve vontade, algo de seu quebrou. O sopro de Tupã lhe escapou, foi para dentro do outro homem. Quando pôs os olhos no conteúdo da lata, soube que a Gaia sentia sua falta, falta do seu esforço, do seu poder construtor. Agora, quase manhã, Tijuca olhou Aracy e nem teve coragem de pedir nada. Como ninguém fica só, o cão se achegou, compreensivo. Esse comportamento espontâneo provocava raiva no índio, porém ele estava exausto. De ser parceiro de Yurupari. 

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