Vértebra 33







Cx4, tembiasaisú,  ou a virtude mais difícil de se conquistar

 

O frei Aín, a meio caminho entre o nada e a liberação, voltou ao trabalho. Recomeçou como frentista no Autoposto Sá, onde o motorista de ônibus que o resgatou da ruína completa o encontrou outras vezes, a caminho da fronteira e de volta ao Tocantis. O dono do posto, depois de alguma conversação com o frei, soube que se tratava de um andante. Julgou que Aín merecia chance de se por em pé e seguir. No primeiro pagamento, feito ao fim da quinzena, Valdemar convidou Aín para participar de um culto religioso. Contou que o pastor era boníssima alma e poderia arranjar um lugar melhor, em que o desafortunado poderia pernoitar, não mais no chão da lojinha de conveniências. Sem melhor opção, o coração ainda fechado para benfeitores e bichos voadores em geral, Aín aceitou a oferta e às dezoito horas de um dia de lua cheia, sentou-se no último banco da humilde casa de oração. As palavras do pastor não causavam revolução ou mudança de paradigma. Porém, eram suficientemente anelantes, a ponto de Aín ir apertar a mão de Lobato ao final do oficio, a maior parte animadamente cantado, ponteado de palmas e responsórios. O pastor, que sabia da situação mirrada do possível cabrito que retornava ao rebanho, ofereceu-lhe um quartinho aos fundos da assembleia, uma suíte para quem andava a deriva e nem sabia mais há quanto tempo. Como pagamento, pediu: abrisse a porta da igreja pela manhã e a fechasse à noite, varresse diariamente o espaço coletivo, trocasse as flores dos pequenos vasos ao lado do púlpito, passasse óleo de peroba no velho órgão e álcool nas cadeiras plásticas. Uma vez por mês, lavasse o piso e as janelas, poucas. Essas tarefas não comprometeriam os horários do posto. Sobre a cama do quartinho, com banheiro conjugado, estendida à maneira militar, Aín encontrou uma maleta com o básico para uma apresentação digna junto à comunidade, bem como dois conjuntos de vestes para trabalhar. Havia duas bicicletas na casa. Uma foi emprestada ao frei, aprendiz de aveiro. O ex religioso ficava em silêncio reverente quando lhe perguntavam sobre as origens, ou se limita a resmungar yo soy galego.

 

Não era uma redenção bíblica, mas causou algum efeito no rebanho de Lobato, para o sim, para o não. A polarização das opiniões provocou  fervilhantes preleções sobre oportunidade, em especial, caridade e compaixão por qualquer desalinho, independente dos maus passos e aflições. Tal ato amainou as angulações, porém haverá sempre os espinheiros, fazem parte da Gaia. Por três meses, os fatos foram mais ou menos os mesmos, noticiados pela Gazeta e pela Difusora. 

 

Na quinta vez que viu o garotinho na mesma posição, sentado no meio da estradinha que levava à Assembleia, muito concentrado com seus deveres, Aín achegou-se. Desceu da bicicleta, puxou o apoio para mantê-la de pé. Agachou-se ao lado do menino e esperou. Passou-se quase meia hora, até o rapazito voltar das folhas onde desenhava e escrevia. O menino, de uns oito anos, assustou-se quando percebeu a companhia, mas o medo logo se desfez. Yin Yin[1] estava ao lado do frei e foi a entidade que o menino viu primeiro, sombria, porém simpática. Juca ficou calado mais um pouco e o que disse, quando se expressou, atarantou Aín: bonito seu Anjo triste. Sem demora, desenhou o que via. Ao olhar o desenho, Aín teve a clariaudiência. Procuro minha mãe, a que andava contigo, a entidade contou.

 

Aín montou na bicicleta e pedalou para longe, desesperado. Quando deu por si, batia à porta do pastor. Caiu de joelhos e pediu exorcismo. A comunidade e também Lobato evitavam os enfrentamentos com seres invisíveis. Pelo menos foi uma atitude sincera. O pastor encaminhou aquela ovelha perdida ao padre da cidadezinha, não sem um suspiro, perdera um bom lustrador de órgão. 

 

As vozes explodiram na mente de Aín, suicida, suicida, suicida. Ou assassino, assassino, assassino. Outros verbetes ofensivos feriam com setas envenenadas. Sem demora, o frei foi a procura do padre. 



[1] Alcunha do filho de Gabriela Mistral, a Alcayaga.

Comentários

Postagens mais visitadas