Vértebra 32
E houve a noite de encontrar Janjala em Manaus, desses encontros que parecem acidente.
Nas andanças para o novo trabalho de enfermeira, Fia encontrou a moça a revirar latas de lixo em um beco. Aproximou-se, discreta, cheia de intuições, foi arrulhando, como fazia com a filha. Não demorou nada e a menina já contava sua pequena jornada, puro degredo. Morou perto do Jardim Botânico. Não suportou mais ver o pai espancar a mãe e a mãe espancar os irmãos, Janjala incluída no massacre. Uma parceira, vizinha de barraco, fugiu com ela para o miolo da capital, ambas sem nada. As duas se viravam como era possível, dormiram com um olho aberto, onde os meganhas deixavam. Comiam o que achavam ou o que as moedas que lhes davam podiam comprar. Nesse encontro com Fia, fazia duas luas que estava por conta. Janjala até falou para Maria não aceitar, foi dizendo, mas Maria gostava de cerveja, cigarro, chocolate e o proxeneta oferecia miçangas, tecido fino, camisola de seda, cama limpa. Janjala se benzeu, fugiu, veio sumir-se ali.
A moça preta azul, Fia nunca vira uma pele como aquela. Enamorou-se de Janjala e fez o convite. Seriam três crianças em idades diferentes, a Ceição, um apartamento claro, comida farta, registro e salário. A função era manter o espaço arrumado. Olharia os pequeninos à noite, quando as mães iam estudar.
A Natureza era linda, garantia o impulso de voo. A Janjala foi dado ver o anjo de Fia, tão preto azul quanto ela. A moça saudou a entidade em lágrimas e partiu feliz, segura, foi tomar um banho, recebeu um prato de comida quente e boa, uma cama fofa e cheirosa. Nascia outro jeito de viver em comunidade. Ao olhar João Claro no berço, foi como se um raio de coragem riscasse a menina pelo centro. O menininho tão pequeno e tão cheio de cicatriz ia ser, a partir daquele instante, o seu farol.
Agora é possível voltar um pouco a narrativa, ao dia da visita a Mayara, Hospital de Eirunepé. Ceição, Fia e Jovino entraram na enfermaria no momento em que a avó abraçava o netinho e chorava todos os oceanos. O bebê tinha chegado à Gaia com uma bagagem menos extensa que a da Indiara, mas não menos difícil de carregar. Pela primeira vez, o coração de atriz recusou voz, ela renegou o filho de sua filha.
Não é possível saber se as convicções, ou o perdão que não deu aos seus homens, ou a aflição que viu a Indiara passar por vinte anos, a barriga da moça desbragada sobre o catre, no humilde casebre. Ou se foi o menino, bonito feito a filha, desprovido de movimentos, quem lhe inspirou maior aversão.
Concluído o abraço de despedida, lágrimas secas, Mayara estendeu o bebê a Fia, como quem oferece uma prenda. A índia sabia de sua incumbência. Ceição olhou para Fia e consentiu, entendeu que naquele momento havia uma aliança formada, de renúncia, de recato e de progresso. A decisão das moças em apadrinhar aquele neto foi fundamental para que Mayara ganhasse um pouco de cor e aceitasse viver no rancho de Selim. Quando soube, afinal, dos arranjos de viagem, a avó respirou aliviada. Iria cantar outra vez, dar curso às suas capacidades. Iria ensinar. E aprenderia, com o velho Selim, a perdoar.
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