Vértebra 31
Cx2, piramotyba ou o equilíbrio
Éramos, todos, lepidópteros. As estações nos marcavam, também destoavam. Distavam. Vínhamos da mata, arrastados do chão. Arrasados no chão. Apegados aos troncos de imensos jacarandás. O alimento era a seiva, a polpa. A maioria de nós não fez asas, não conheceu cidade ou arranha-céu. Civilidade. A palavra mais linda que conheço. A maioria não esperou por uyra em uma esquina do rio. Pior, fechou os olhos para o voo. Igual, fechou os olhos para o Itamaracá.
Fôramos, as tias, primas, avós e eu, usadas feito sujidade muita vez. É triste dizer isso, posto que as sementes humanas dão bons espécimes. Outras culturas, outros hábitos e nós, em contracanto com a mata. A arquitetura da vida é natural. Sorríamos nós, mulheres, levantávamo-nos, saudávamos Tupã, íamos lavar vestidos, ferimentos. Sentíamos falta da vida comunitária, ordeira. Muitas vezes, nos castigavam mais, os avós, os guerreiros, os irmãos.
Não desejo criar cizânia. Há razões, para homens e mulheres fazerem o que fazem. Talvez queiramos ter a certeza do vermelho do nosso sangue, que é rio em essência. Falar sobre nudez, sobre a disponibilidade do açaí, caído das árvores. Há perguntas que não é preciso fazer. De Anhangá, quem quererá saber a verdade? Nós, as mulheres, éramos a casca, a noz, poeira e lama. Quem se lembrava de que éramos caravelas? Que geravam os filhos da Terra? E antes de ser da mata, onde estávamos? O que fazíamos? São perguntas que não me cabe fazer.
Mulheres lindas éramos, fortes como pau-brasil. Nossa pele, nossa roupagem. Às vezes o urucum, as penas, as pedras, enfeites naturais. Os cabelos suportavam o peso dos filhos. Podíamos carregar nove, doze, dezoito, pelos fios pretos. E bater pilão como alento. As tetas escorriam até os pés, de tanto mamar. Os dentes não conheciam cárie. Sorriam sempre. Até das surpresas dos regatos, dos homens e até mulheres que queriam brincar, alisar, desgarrados de suas esquadras, desgraçados de sua gente.
Minha mãe, é certo que o homem que a cobriu não era da tribo. Podia ser inimigo da raça. A mãe pode ter alucinado e se jogado no rio. Eu, largada na mata, pode ter sido salvamento. As asas não surgiram para esse tipo de voo, que se chama elocubração, delírio que choro no papel. Choro em algumas tardes, pelas minhas mães e por mim.
Éramos, todos, lepidópteros. Coube a mim o recebimento das asas. Eu, levantada do chão pela Mãe-da-Lua, que me deu a Cabreúva Vermelha, que foi embora da Terra daquela maneira, com uma bala no meio da testa. Preciso das asas, para olhar as novidades, os desenvolvimentos. Para sair do chão, pousar no chão. Para expandir o esforço das letras, expressas com a língua e com os dedos da mão esquerda. Isso, peguei o lápis com essa mão. Depois, empunhei seringa, unguentos. As bacias, os baldes e as faixas, com os cabelos que cortei.
O fenômeno pelo qual transcendo leva as alcunhas de capacitação, aperfeiçoamento. Como alguns peixes, que alteram suas bexigas natatórias para sair das regiões abissais. Fico perto da mata, entro na mata, para cuidar das vidas que a mata abriga, até quando o pulmão funcionar. As asas vieram para este fim. Lá, entro vestida, de aprendiz de aveiro.
Somos, todos, lepidópteros. As estações nos marcam, larvas, pupas, seres com asas, às vezes confundidos com fadas, anjos, Ca-apora.
Houve várias ocasiões para arrastar-me, fui flagrada nos becos de Manaus, em geral ao voltar à noite das missões de socorro. Duas vezes, não foi possível segurar cria, e eu já não tinha Sá Ana para curar com gengibres. De nada lamento. São os voos, somos responsáveis. Surpreendidos, quem sabe. Inocentes? Recebida a mensagem, pode-se negar a atender. A Natureza faz o seu trabalho, se serve e prossegue. Os seres com asas continuam a nascer, frágeis, lindos, de vida curta.
Foi interessante a transformação. Fia era a fase com asas. Duraria o tempo necessário. Arauto, silêncio, bilro, sutura, o ato de alisar, o que fosse para manter a dinâmica do aperfeiçoamento. Fia sabia o quanto desses movimentos incidiriam sobre Isi, seu cipó mais afortunado. Quando ia se deitar, a mãe antes abraçava a filha e lhe contava histórias do Amazonas, das Américas e até de lugares que ainda não supunha, onde havia riquezas dos inconscientes para sorver. Fazia aparecer nomes, flores, seiva, sono.
Isi, muito jungida pelos bichos, pelos rios, pela floresta, viu os colegas do jardim de infância como cipoal, com quem era bom rolar, pendurar, fazer cócegas e sonhar. Logo, era um entre eles, logo aprendeu a contar o que sabia de Eirunepé, da mãe, da tia, do Jovino, do avô Selim, da Sá Ana, da Mayara, do menino sem nome, dos pássaros. A doar, a perdoar. E a ficar em silêncio sobre outras sabedorias que tinha e que perturbariam o equilíbrio da nova cidade. Seu carcará era Jovino. Passarão e escudo de cordas, ronco de cachoeira com manga. Eles se encontravam à tarde, quando Jovino a ia buscar na escola e seguiam para casa de mãos dadas. Eles moravam agora no bairro Presidente Vargas.
É preciso falar de Mayara e do bebê sem nome.
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