Vértebra 30
Cx1 piramutaba ou o bom senso
Não se sente falta quando se está na oca, quando se planta na mata. Em se plantando, tudo dá. O toque do pilão fortalece o braço, sustenta, deixa mover, equilibra, protege do passado, ancora o presente. Dá futuro.
Xaxim Verdadeiro foi apartada da oca no dia do seu nascimento. Desde então, teve o aqui e ali de amor que se pode ter quando a vida é selvagem. Não se passou muito tempo, a civilidade veio naturalmente. Orun, o avô, ofereceu-lhe parte dos bens de Curuatinga, o irmão. As lides na aldeia, Isi’po, Eirunepé, as andanças dos partos, todo ensinamento ancorado tingiu a pele e a alma de Xaxim Verdadeiro. Havia nela um discernimento latente, do que é lícito, admirável, afável. O corpo da índia, jovem e vigoroso, em alguns momentos reclamava contato físico. Xaxim Verdadeiro logo entendeu que, em desdomar a natureza, perderia o mais sagrado mérito – as inclinações para conviver. Fazer amor com o rio pedia mais.
Quando o frei Aín a desposou, Byr imaginou ter encontrado nele um companheiro de jornada, um pai para seu bebê. Até o momento, era difícil para ela entender o sumiço do santinho. De beatitudes nada sabia. Orun era o grande sacerdote de Tupã. Mãe-da-lua, a avó, sacerdotisa. Aín não era da mesma ordem. Tampouco se assemelhava a Curuatinga em distinção. Era um outro tipo de luz que se apagou ao partir. Orun retinto se foi com ele. Da dura lição, deixar o rio levar, ficou a acuidade para a natureza dos consolos que doava, as mães, idosos e crianças que assistiu. De Aín, Xaxim Verdadeiro pouco se lembrava. Foi ao nascer do sol, no dia do cartório, que a imagem do frei lhe voltou. Foi bem naquele dia em que desenterrou a lata de sardinha corroída, onde jaziam dois diamantes rosados, duas lágrimas. O antúrio, que serviu de túnica ao tesouro por vários anos, suspirou aliviado.
Interessante pensar sobre a porção basal de um habitante da Gaia. De onde ele vem? O que faz ao se estabelecer? Para onde se dirige? Rio abaixo, rio acima? Fica encalhado em alguma beira? No Cartório de Eirunepé, Xaxim Verdadeiro aguardava o momento de imprimir seus documentos e os da filha. Das conversas com o velho Selim, este sentado ao lado delas nas cadeiras de esperar, armaram um enredo simples e justo: o pai de Xaxim Verdadeiro seria adotivo, seria Selim. Mãe desconhecida. O nome a figurar no documento: Fia Uslu. Data de nascimento aproximada: vinte e um de um setembro, contando agora vinte e dois anos. Natural de Tarauacá, Acre. Descendente de índia e branco. Escolaridade: ensino fundamental completo. Nome da filha: Isi Uslu, pai desconhecido, o avô como tutor. Data de nascimento: doze de um dezembro, contava agora seis anos. Se fossem pedidas referências, comprovante de endereço, ficaria o rancho de Selim Uslu. E assim, no dia onze de novembro de um ano bom, Xaxim Verdadeiro herdou um pai branco estrangeiro, uma nota escolar máxima, um pedaço de terra, um apartamento de aluguel na capital, um futuro diploma de enfermeira, uma nova alcunha e um sobrenome. Os pedrilhos, a índia os deixou com o velho Selim, para os estudos de Isi’po. Ele explicou que o valor do tesouro era acertado, renderia comida por quatro, cinco meses. Pouco, se considerado o amor preso em dois olhinhos rosados. Um começo, contudo, Selim faria das pedras tapete.
Isi’po ainda não tinha tempo para estranhar que seu nome encolhera. Lembraria sempre do belo pássaro da Tetê[1] a gritar na mata ‘si’po ‘si’po ‘si’po.
Ainda haveria muita viagem antes de se alcançar o monte. Organizava-se caravana colossal, desenhava-se o mapa. Quem decidiu embarcar junto foi Conceição. Ia estudar com Fia o ensino médio em Manaus. Tirara nota suficiente para conquistar uma vaga no CEJA Jacira Caboclo, Anexo Noturno. Jovino ficaria na mesma escola, curso diurno. Para ele, haveria também o Primeiro Conservatório de Música de Manaus.
Selim era homem antigo, de muitas relações. A América do Sul, quase pequena para as ramificações de seu negócio com tapetes, obras de arte e joias. Sempre correto e previdente, manteve uma rota segura para seus bens. O que não possuía mais eram contatos familiares. Fizera-se sozinho em Cartagena. Desde os doze anos, carregara tapetes nos ombros. Até que construiu um império suficiente, investimento seu. Silencioso, razoável, deu-se conta de que, quanto mais se auxilia o próximo, mais recursos de todo tipo aparecem.
Um único erro de jornada: a amante Aigul. Por ela quase deitou-se em vasa, no auge da mocidade. Ficou preso em uma cela na Bolívia durante sete anos, acusado de contrabando de mulheres. Por uma série de fraudes, aplicadas por um dos comparsas de Aigul, foi difícil para os advogados de Selim provarem sua idoneidade. Quando se viu livre, Selim andava abjurado, um velho precoce. Tentou tirar a própria vida quatro vezes. Quis jogar-se de um precipício em Teyuna, afogar-se no Rio Solimões, perder-se na mata no Acre e, por fim, tomar arsênico em Eirunepé. Esse último atentado foi impedido por Catira, a mulher que lhe fazia companhia no rancho há tempos. As provas de devoção da governanta foram trazendo Selim de volta ao bom senso. Aquietou-se e passou a apadrinhar eirunepeenses, com quem se sentia bem. As moças, Fia e Conceição, seus filhos, eram agora a mais rica trama de um tapete voador. Mayara, a cantora, seria consolo. Para aqueles que esqueceram, a mãe da falecida Indiara ainda guardava leito.
As conversas entre a constelação familiar de Selim, a tangível e a etérea, formada em terras brasileiras, davam gosto. Em torno da grande mesa da sala foram firmados direitos, deveres e estratégias, para que se mantivesse unida. Os movimentos do Juruá, suas curvas acentuadas, serviam de metáfora da adaptação. Cada gesto do percurso posava, tal o rio. O destino era o grande mar, para onde todos somos chamados, cantilenava o velho Selim. Agora, era dar batismo legal à filha, à neta. Byr assinou seu nome branco com bela caligrafia. A foto três por quatro, do documento de identidade, desmentia o disfarce que a moça usaria por vinte luas.
Mayara estendera em demasia a permanência no hospital de Eirunepé, heroína de ópera que era. Toda a energia vital de que dispunha foi dispersada com os últimos acontecimentos. A cantora pusera seu talento a serviço da filha, a Indiara, vinte anos de dedicação para com uma tetraplegia. Quando a urna baixou a tampa sobre os despojos, pareceu a Mayara que se lhe fechava a garganta. Os sustos provocados pelo tiroteio na travessa, o parto traumático que assistiu em meio ao caos, a bravura, o assassinato de Maverick, emoção aguda para aquela mulher lírica. Entretanto, no dia dez de novembro, do mesmo ano bom para Byr, Mayara tornou a falar. Pediu água. Pediu para ver o neto.
[1] Referência a Kadosh, arara da cantora Tetê Espindola.
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