Vértebra 26
S2, o ouvir
Os movimentos da Gaia são assim mesmo. Ajustes são feitos para que todos cumpram seus compromissos com os próprios grilhões. Justos precisam partir e outros ficam mais um tempo, até que novas viagens possam harmonizar o ambiente. Como o que ocorre com meteoros. Cometas. Vítimas, sim. Inocentes, não.
O céu apresentava curiosa coloração de ocaso. Uma combinação de azuis, verdes, rosa, laranja, lilás, roxo cinzento. Difíceis para a manipulação de um artista humano, fosse ele pintor, escritor, músico. A Alcayaga admirava o langor daquele instante. Interferir com forças como essa que os amigos chamavam de Yurupari parecia a ela mais da alçada de Pablo[1]. Ele estava em outra parte no momento, auxiliando em um desabamento de mina de carvão. Para ela, caberia a cabeceira da nova avó. Ensimesmada, recitou sem sentir
Donde el indio lo está llamando,
el tambor indio le contesta,
y tañe cerca y tañe lejos,
como el que huye y que regresa...[2]
Xaxim Verdadeiro ninava Isi’po, que pedira chamego. Cantarolava o que se lembrou dos cantos da Cabreúva Vermelha, da Mãe-da-Lua, do Tamõi. Sentada em sua rede, podia olhar a travessa. Notara que, ultimamente, um índio muito apessoado vinha visitar o velho Selim. Toda vez que ele passava, de bata bordada e saiote, olhava para a moça e cumprimentava educadamente. Uma faixa de urucum realçava a expressão firme do olhar, que lembrava a Yauaretê. Byr pensava, nessas horas, que bonito se tudo ficasse sempre certo e bom. Era um tempo de muitos pássaros voejando por aqueles rumos. A característica canora do grupo, diversificado, era usar códigos breves e sutis. A queimada havia sido controlada, o ar andava limpo, o rio quase azul.
A Indiara estava de volta à palafita. Exigia tantos cuidados que era preciso ficar de longe. Isi’po andava triste. Byr estava com Mayara o quanto podia. A senhora, conformada com a ideia de ser avó. Era provável que o bebê nascesse por cesariana. O quadro da Indiara permanecia estável. Toda energia de que dispunha – se via -, era dispensada ao embrião. Sá Ana não fizera partos desse tipo, estava tensa. Maverick providenciara socorro suficiente para que tudo corresse bem na travessa. Fora acolhido por Mayara, até abençoado, que remédio. O Dr. Silva achara melhor deixar mãe e filha em casa, embora tivesse recomendado uma pensão próxima ao hospital até o parto. Não contrariou a mãe na decisão, contudo. Ia uma ou duas vezes por semana consultar em domicílio. Revelara-se, ele também, bom homem, experiente com o ambiente da Amazônia. Soube acolher as diferenças do mundo que ancoravam ali na beira do rio, cuidava da dengue, febre amarela, malária, verminoses e outros bocados destrutivos que flagelavam os pobres e, atualmente, os abastados igual.
A Indiara dormia por várias horas durante o dia e nesses momentos, após o preparo da refeição, Mayara se reunia às crianças para tocar. Jovino, Betinho e Heloana chegavam com seus instrumentos novos e praticavam por hora ou duas. Já se escutava um esboço de conjunto harmonioso. Temas simples, do caderno de Waldemar Henrique[3]. Algumas vezes o velho Selim também vinha ouvir. Quando chegava o Tajapanema, ele se arvorava a cantar, voz abaritonada e levemente rouca. Terminada a aula ensaio, Mayara seguia a tocar o oud e a cantar. Naquela tarde era o Voi che sapete[4] que estreava. Havia bolinho de piracuí em uma gamela, as crianças foram comer perto do rio.
Pelas contas, faltava um mês para o nascimento. O doutor viera pela manhã, também Sá Ana aparecera. Foi Isi’po, que naquele dia recebera autorização para ficar perto da Indiara, quem notou a roda molhada na camisola. Avisou Mayara, suave. Sem refletir, a senhora pediu que Isi’po corresse chamar Sá Ana. Byr estava com ela, atendendo a outro parto em curso. Sá Ana, intuída, pediu que as duas cuidassem de tudo e não saíssem dali. Se algo assustasse, que fossem se esconder com o velho Selim, a nova mãe e o bebê estavam saudáveis. Aquela ordem soava como ímã. Isi’po distraiu-se, encantada com o recém nascido que mamava. Jurema estava tranquila, quase refeita, parto bom era assim. Byr evocou as forças da Natureza e logo um cordão magnético envolveu a casa. A sintonia estendeu-se pela travessa inteira. Havia de cozer na casa e Byr fez um caldo que contentou as três. Nada, senão ninar os filhos e repousar. Foi o que fizeram as mães, enquanto as crias adormeceram. Antes que Isi’po capitulasse, pediu à mãe que lhe contasse a lenda do Tambatajá.
Jovino, quando se percebeu sob a mira da submetralhadora, pensou em tucunaré. Pensou nos estalidos da frigideira, no sabor doce, na leveza. Pensou em angu e açaí. A mãe fritava sem pimenta para ele. Umas gotinhas de limão bravo. Foi no cheiro bom de frescura do rio que pensou enquanto lhe arrastavam pela camisa, rasgavam o tecido e lanhavam sua nuca com unhas mal feitas. Por alguma razão, o medo era da dengue. Daquela que saia sangue.
Jovino sabia da vida que o pai levava, Conceição não escondia. Também não envenenava. Já bastava o bodum deixado por Yurupari, não precisava zangar mais. O pai foi embora quando Jovino ainda não tinha memória de guardar. Foi ganhar mais dinheiro, para tirar a família daquele lixo, era o que ele achava da travessa. Uns diziam que tinha sido liquidado na batida da Favelinha. Conceição sabia-o vivo e aprontando muito, muito feio. Sabia porque sabia. Queria o marido longe, não precisava morrer nem maldar, só sumisse da vida deles. Lavando roupa no igarapé, Conceição era mãe e pai. Jovino florescia bem. Até tocador de viola ele estava virando. Quem sabe, um dia, fosse tocar no sul.
Pois naquela noite estava ali o pai ladino, com a submetralhadora apontada para a cabeça do filho. Agressão gratuita. O Muçum, assim conhecido em seu meio, esquecera a feiosa da Conceição, ainda mais a cria que ela parira sozinha. Quando deu com as crianças brincando na margem, acreditou ser um bom trato toma-las reféns. Crianças pela delação.
A falange andava atrás de um carregamento de diamantes. Acreditavam que as pedras tinham sido espalhadas pela travessa, encobertas pelos moradores. A manobra exigia barulho, ameaças, extermínio. O primeiro plano foi incendiar. Depois, acharam por bem causar, para os repórteres noticiarem o terror que a facção tocava, contarem ao Brasil inteiro que eles não eram pequenos. Queriam ser notados. Ganhar fama de falange verde. Não eram primeiro escalão. No máximo candiru. Mesmo assim, uma noite escura e tumultuada se afigurava.
Dando tiros para o ar, as crianças de arrasto e gritando, cinco encapuzados se puseram a entrar nas palafitas, jogar os poucos pertences pelas aberturas, arrancar tábuas, virar fogões, fuçar galinheiros, escavar em alguns lugares menos pantanosos. Jericos pensariam mais, antes de criar um pandemônio daqueles. E as crianças presas feito fantoche, sacudidas no ar, as armas na cabeça.
Sá Ana precisou intervir outra vez para que o menino viesse ao mundo. A Indiara era o próprio rio. A passagem para o corpinho era por demais estreita e imóvel. Mayara sustentava a filha e sussurrava canções e nenos junto aos cabelos encharcados. Dessa vez, era um corte no baixo ventre, com a mãe acordada. Embriagaram o quanto puderam. Maverick tinha ido buscar o doutor. Sá Ana aguardou o máximo que pode e fez o que era preciso. Nunca em sua vida houvera qualquer vacilação. Dessa vez, vinha em forma de lágrimas, tão abundantes que poderiam turvar a precisão do instrumento tosco que a parteira iria utilizar no corte. Um suspiro de alívio se ouviu quando o Dr. Silva entrou. Nenhuma pergunta ou questão. A precariedade estava nos seus planos. Esterilizou o local e separou as carnes. Logo o menino saiu. E chorou bem no momento em que Maverick impediu com um soco a entrada de um dos delinquentes. O homem ainda teve tempo de olhar a barriga aberta, o bebê ensanguentado no colo da avó, o corpo nu estirado sobre o jirau. Um impregnante cheiro de flor envolvia a palafita e era tanto que nauseou o patife, já tonto com o golpe que levara.
Maverick se tornou mais que cinco, só não foi suficiente. O ataque corsário era coreografado, mesmo sardônico. Lembrou velhas batalhas em mar aberto para Gaetano e Donis[5], diligentes agora no manejo das resistências invisíveis. A coisa não durou mais de uma hora e da casa de Conceição eles não passaram. Com uma pá, a lavadeira ofertou algum estrago a caras, pernas e culhões. Nessa noite se confirmou que a travessa era abrigo de velhos, mulheres e poucas crianças. Não fora os assistentes da mata, invisíveis para os imprevidentes bandidos, todos cairiam.
Antes de partir, Maverick ainda desarmou o último dos meliantes, o que sustentava o menino Jovino. O rapazito pode se esgueirar para dentro da palafita, logo acolhido pelos braços de Sá Ana. Os disparos pegaram de jeito a Heloana, tão bonitinha era. Betinho ia partir depois, ficou uns dias ainda acordado, duas balas alojadas no baço. Maverick lembrou a Byr a Cabreúva Vermelha. Aquele furo na testa, que deixava ver através. A policia chegou a tempo de render toda a gangue. Sabia-se que logo estariam soltos. Porém, coisas tão assombrosas foram presenciadas naquela noite, naquela beira de rio, que talvez não valesse a pena um novo ataque. Talvez tenha sido raio, onda que o rio formou, palmito juçara, boto fora d’água, Iara em pessoa quem berrou as duas pedras da medicina, as duas pedras da medicina. Quem teve ouvidos, ouviu.
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