Vértebra 25



S1, abiu ou a  lucidez

 

Byr conheceu outros pedaços de Eirunepé naquela tarde. Viajou na perua de Maverick. Acompanhava a Indiara, que não passou bem. 

 

Byr olhou tudo, olhou muito. Marcou o caminho, os detalhes. Os rostos. Gostava dos rostos. Ver muitos de uma vez fazia lembrar as meninices, quando as tias riam juntas e trançavam cipó. Essa saudade era dor. Estranha também. Cabreúva Vermelha ia sumindo na memória. Nos últimos meses, ao estudar as literaturas, Byr dera com várias histórias de crianças criadas sem pai e mãe e que, de toda maneira, viravam gente, traziam ao mundo outras gentes e partiam, sem deixar rastro. Olhava os rostos, em especial os das mulheres. Queria saber de suas lutas, de suas curas, de suas letras, de suas maternidades e filiações, do jeito como preparavam o piracuí. Se gostavam do abiu. Até dos seus homens ia gostar de saber. 

 

Quando mergulhada no olho da mata, para a índia o verde tinha tonalidade petrolífera. Olhar os prédios de concreto não era saudade, era falta. Na cidade, que nem tão grande era, o verde quase branco tonteou Xaxim Verdadeiro, pôs sentido em seu sentir. A moça escutava dentro a alcunha Byr, Byr, Byr, a lhe bater no fundo do ouvido. A escuta e a visão dançavam, aturdiam. Os sons do português das gentes na calçada, misturados a tanta coisa, deixavam anotar os verbetes tupi. Byr, Byr, Byr. 

 

Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará andavam por ali, Byr sabia sem saber. Uns biotipos de tez acabrunhada, como se um tanto de deserto lhes pesasse. Gente de um verde argiloso. Xaxim Verdadeiro viu seu próprio rosto em várias mulheres. Seus cabelos, sua boca, o contorno do nariz. Irmãs de outros tempos, de agora, nem importava. Byr não sabia rir e gargalhadas incomodavam. O sorriso era luminoso, entretanto, silencioso. Passaram por ela duas mulheres de voz muito esganiçada, ocupavam demais a paisagem, mais que as maritacas. Por um momento, os homens que Byr conhecera voltaram. Voltaram alisando. Um frêmito correu pela barriga, fez transpirar. O apito da ambulância a trouxe de volta. Xaxim Verdadeiro teve tempo de ver a maca sendo baixada e o homem queimado aos gritos. Não soube como permitiram. Se achegou, impôs as mãos e o homem ficou mais calmo. Ligeiro como o voo de um besourinho-do-bico-vermelho. Nessa hora vinha o Maverick, só braços de tão forte, a dizer que a Indiara precisava ficar internada. Ambos voltaram ao rio, para que Mayara pudesse ter com a filha. Por aqueles dias, a cidade comemorava o padroeiro, Francisco de Assis.

 

De volta com Mayara ao hospital, Maverick precisou se abrir. A Indiara esperava criança. Foi inevitável. Byr tinha se afastado com Isi’po, subiu o rio, já vinha. Tarde quente, a água tão aconchegante. Foi puro, ele jurou. Chorou. Não sentia desejo de perdão, tamanho amor e respeito alargava-lhe a alma. Só queria ficar. Pediu que a mãe não o afastasse da Indiara, que permitisse casamento. Em profundo silêncio, Mayara entrou na enfermaria. Como não percebera antes o ventre de mais de três meses? Como Byr não dissera nada? Havia mais seis pacientes no espaço. Uma enfermeira veio, verificou o soro, olhou para a mãe e disse que o médico logo viria. Mayara acarinhou a mão da filha e não se furtou em tocar-lhe o ventre. A Indiara reagiu como se responde a choque. A impressão é que teria se encolhido, para proteção. A mãe a abraçou com brandura, chorou um pouco e teve de olhar o Dr. Silva, que aguardava. Os dois foram a uma sala contígua, onde Mayara discorreu sobre o histórico da filha até aquele momento. Contou tudo. Todas as aflições. Esvaziou. Pensou que tombaria ali mesmo, sem nada. O médico a amparou, chamou uma auxiliar. Sedada, atenta, foi posta em uma poltrona ao lado do leito da Indiara. 

 

Maverick fumava, encostado às balaústras que circundavam o hospital quando os viu. Aquele chapéu quebrado na testa. Tratou de entrar e sondar pelos vãos. Era só combinação, não acerto, sabia. O homem aquiescia sem falar. Tijuca ilustrava. Maverick não tinha certeza se fora reconhecido. 

 

Isi’po, com seus quatro anos, sabia muitas coisas. Tinha notado o ventre da Indiara inchado, não deitara mais sobre ela, com medo que doesse e a amiga não pudesse reclamar. Contou à mãe que pusera a mão e sentira movimentos. Até imaginou fosse um peixe a nadar ali. Byr também sabia. Soube no momento em que voltaram da busca por Kadosh. As células estavam mexidas, também o ar, a margem, o rio. E Maverick estava particularmente enevoado. A Indiara, fora do chão. Abrira os olhos. Eram foscos, da cor do rio. Dois vultos estavam mais adiante, os rostos voltados para a mata. Byr, discreta sempre, juntou os restos do piquenique na cesta. Voltaram para a travessa escutando os cantos de Isi’po, que imitava Mayara muito direito. Gaetano e Donis seguiam atrás. 

 

Os dois marinheiros sentaram-se na paliçada. Um ser de ébano estava ali também, dentes muito brancos. Só não falavam a mesma língua. Chegou naquele momento uma mulher prateada, de cabelos que deveriam medir três metros de comprimento. A túnica era igualmente prata. Conforme ela se movia, os cabelos a acompanhavam, um pouco acima da vegetação. Ficou com os vultos, a espera. O cordel de urubus chegou a seguir, parou ao lado da Mãe-d’água. E Kadosh. E a Alcayaga, Benavente y Cela. E Camões[1]. A reunião era extraordinária. A Yauaretê chegou, por fim, transmutada em homem, dos vermelhos. Seria ele a presidir a assembleia. Trazia orientações de ação e proteção. Tinha pedidos de moratória na pauta. Também ordens para novas mudanças, como haviam feito antes com Cândida. 



[1] Alusão a Luís Vaz de Camões

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