Vértebra 24





L5, a lenda do Tambatajá ou o sacrifício

 

O tururim entrou bem cedinho na palafita. Ficou ao batente, olhou comprido a menina que dormia. Olhou mais um pouco, deixou uma semente e tornou a ciscar perto do terreiro. Fazia mais calor naquele dia e um cheiro de queimada deixava a visão turva. Permanecer deitado ajudava a respirar. 

 

Byr tinha ido pescar. O rio não estava para peixe. Mesmo assim, era hora de refazimento. A índia mergulhou o corpo nu e boiou por longo tempo. A fumaça empesteava tudo. Fazia lacrimejar. Mayara sabia sobre Isi’po a dormir. Foi buscar a criança, deitou-a ao lado da Indiara. A senhora naqueles dias tossia seco, pesarosa. Olhou as duas figuras tão amadas e não pode conter o choro. Entendia tão bem que tudo era substituível. A mata, viril de tão forte. Uma faísca e lá se iam estádios de futebol inteiros, áreas que antes guardavam tesouros alveolares. Os pulmões, pensou Mayara e tocou o próprio instrumento vocal. Nada que lamentar. Seguiu a mexer seu tacho de goiabada, pelo menos a travessa teria um que de adocicado na mesa do almoço, além do tambaqui de Xaxim Verdadeiro.

 

Na Serra Parima, os ouvidos benfazejos de Aín aguardavam o sinal. Os contrabandistas soltavam fogos de artifício e marcavam com isso sua localização. Era possível driblar a aduana, emitindo estouros de vários pontos em simultâneo. O fio do tempo de Aín o projetara para longe do Brasil, sem mãos que o pudessem agarrar, era o que pensava. 

O trasno, enfarado, andava em círculos sobre o Casiquiare, como a decidir se ficava ou tomava um voo para sua terra natal. Desde que o frei perdera a bandeira de modo leviano, não por se deitar com a índia, mas pelos pensamentos afrangalhados de depois, o duende deixara de farejar. As missões, as órfãs, as mulheres-damas, a peste, a sobrevida nos rios pouco representava. Preferia a floresta de Santa Maria da Feira, onde os parentes falavam sua língua. Fizera amizade com o menino redemoinho, é certo, mas havia compromissos, resgates. Os seres da Amazônia tinham mundo próprio, comparavam-no aos répteis em geral. Isso era o que ele pensava. O trasno era medroso com cobras, a hipótese de ser engolido por elas o fazia ainda mais verde. A surucucu havia contado que seu apetite não abrangia duendes estrangeiros, mas o ser de sombra não compreendeu. 

 

Aín enveredara para uma postura asselvajada que não lhe definia. Tornara-se casmurro, desatento, desleixado. Um cavalo de cela frouxa. A conexão com a luz, antes potente e de grande halo esfriara, desbotada. Responsabilidade de alma. Queria ficar daquele jeito, deixavam. Era amarga a frivolidade, posto que profundamente solitária. Daquelas solidões sem poesia, sem sentido, sem nada. Só atraso e mais dor. Feio, atarracado, Aín era um magricela com pança. Os vermes lhe faziam companhia, causavam cólica e desarranjos. O homem usava um estilingue, com o qual afugentava todo pássaro que ousasse passar por seu campo de visão. Por sorte, era ruim de mira. 

 

Naqueles dias, Aín intencionava desfazer-se dos brilhantes da abobé a bom preço. Um colar com eles valeria uns trezentos mil. Ele tinha material para quatro ou cinco. Precisava de algum alimento e não podia aparecer nos armazéns, pagar com pedra. O santinho tinha ideia de vender o lote de uma vez e, para isso, negócios lícitos estavam fora de questão. Parecia simples. Veio da Serra Pelada, tirou sorte grande. Não tinha ideia do peso das facções, milícias, hordas de malfeitores, peixes enormes, internacionais, galácticos, se pesquisasse bem. Não tinha ideia da origem da pedra bruta. Quando negociou pela primeira vez com um chefe de organização, o tal protetor, cujo nome escrevera no diário da abobé, conseguiu que lhe triturassem o diamante sem dar muitos detalhes, todos urdidos de improviso, em falso francês. Deixara com o homem do tráfico grande parte do burilamento. Abrutalhado pela vergonha, Aín fora soberbo e envolvera Byr e o bebê na combinação. Sua misoginia o fez pensar que a índia enveredaria para a sina das calçadas ou pior.

 

O trasno vira aquele índio a rondar há várias luas. Ficava de tocaia dia, noite. Chapéu quebrado na testa, parecia não ter que fazer senão esperar. Só por isso o duende ficou, queria saber o final da história. Certa noite, Aín descuidou-se e deixou a sacola um tanto longe do peito. A carabina mais longe ainda. Dormia alcoolizado, rotina ultimamente. Bom para o duende, que tomava sempre sua ginjinha. Só não era palerma e se mantinha acordado, observava, aproveitava a última fumacinha do pito. Viu o índio se aproximar e surrupiar a arma. Com uma força que nem sabia possuir, o duende invocou o menino redemoinho. Quem veio foi a Yauaretê. Tão esfaimada que o índio se pôs a correr sem olhar para trás, levando somente a carabina. A fera deixou-se fungar por um tempo sobre a cara de Aín. O cheiro de carniça fez o frei voltar à vigília. A visão da Yauaretê congelou seus reflexos. Aín permaneceu inteiriçado, os olhos parados. Como o cheiro dele não fosse dos melhores, o gato imenso se desinteressou, seguiu para dentro da mata, não sem antes olhar duro o trasno como a dizer tome tenência. O duende deu de ombros e recebeu em paga um rosnado zangado. 

 

Apesar da fumaça opressiva, a chuva que caia lavava devagar o ambiente. Byr, vestido molhado, se mantinha diante do rio, tesa. Escutava um choro convulso na floresta, de gente, de fantasma, de folha, sauá. A passarada pouco comentava, muitos desceram rumo ao sul. Outros animais, menos afortunados, cairiam fumegantes. Nem o português, os cacos de sua língua materna poderiam dar forma ao magma que sentia. Vivia em um ponto da Gaia em que os montes eram calados. Os troncos, calados. O vento, calado.

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