Vérterbra 22




L3, a vida na palafita ou paciência

 

Faróis que indicam os rumos nos mares das paixões humanas. Byr leu a frase em um dos cadernos de Dona Tem e quis entender. A professora, tão simples quanto as gentes eirunepeenses, pensou por longo tempo antes de formular uma frase. A gente se ajuda um ao outro, Byr. Assim que é bom, justo. Assim a mata resiste e todos podem cantar em paz. Há, no meio dessas coisas tão bonitas, aquelas que não afinam. Moto serra, por exemplo. Tem som mais ruim que esse? Porco a guinchar antes de entregar-se? E quando põem fogo no mato, ameaçando cozinhar a todos? E os irmãos que aparecem do nada, enforcados nas árvores? Essas coisas feias são as paixões, se eu posso dizer assim. É como se alguém experimentasse seu canivete pela primeira vez e derrubasse uma sumaúna inteira para pegar só um galhinho. E ainda achasse isso uma grande vitória. Byr olhou a professora um tempo. Mataram minha mãe assim, do nada. Ela ficou um tempo sentada no capão, até o homem trazer, feito esse galhinho do qual a senhora falou. Paixões doem, Dona Tem? Depende do raio que as move, sussurrou a professora, longe dali o suficiente para se saber que ela tinha uma história. Quando ele chegou aqui, chapéu quebrado na testa e aquele olhar de ratoneiro, minha alma gemeu dentro, doeu, foi cantando a professora. Cândida vinha atrás, carregada de bagagem. Era assim mesmo, ela rastejava atrás dele, aqueles bicho-pau estalados na cara. O homem pôs os olhos em mim e eu me senti nua, alisada nos vasos sanguíneos, na medula. Quis, quis mais que qualquer coisa. Foi mesmo como um raio que cega, um chuvão que põe o sapé abaixo, derruba palafita, mesmo as mais fincadas. Por um período ele ficou de longe, só encarando, fazendo vontade. Doeu mais. Um dia entrou aqui e quebrou-me, também às minhas coisas. Uma capivara ou bicho maior, um fogaréu, uma onda bravia do rio. Gostei. Deixei ele voltar. Quebrar mais. Cândida soube. Perdeu muito mais do que se pode supor. Fez o que pode para estar perto, para pegar o que sentia seu. Enquanto isso, eu achava que ganhava. Não há dois sem três eu sabia, nem ligava. Fiquei valente, desbocada, dona. É, dai o Dona Tem. Durou vinte luas, contadas em calendário. Cada visita, destruição e essa dor bonita. Cada visita, um novo móvel, vestido, gula. Até joia. E dá-lhe quebrar mais, até ficar dor feia. E então acabou, como começou, humilhação e dor do tamanho da Gaia mais as estrelas todas. Ele partiu e demorou muito a voltar. Voltou, bateu em Cândida e tornou a sumir. Virou-me a cara. Paixão é destempero, Byr. É derrubar todo o pote de sal e pimenta no tucupi. É roubar o bom de tudo. Mas tem esse bom do começo, tão traiçoeiro. Faz a gente sentir saudade e querer outro forasteiro, chapéu quebrado na testa, e a agressão e nunca mais o adeus, aquela cusparada que levei na face. Existem os faróis, Byr. Podem ser vaga-lumes, o clarão da lua, um raio de sol, uma chama pequena, uma faísca. O velho Selim. Eles estão em tudo. Eles são amigos que avisam, que ajudam a gente a levantar, lavar a cara, jogar os cacos fora e olhar para outras coisas que carecem o nosso cuidado. O filho que esse homem fez em mim eu perdi. Tinha dois meses. Morreu de tifo. Eu estava doente, não pude cuidar. A travessa estava com raiva, não ajudou. Eu nem sei como pude ficar aqui, como me deixam educar as crianças. São os faróis, Byr, os faróis. 

 

Onde andava Cândida? Byr soube, naquela mesma tarde, que Maverick a havia levado ao centro de Eirunepé. Que ela havia ficado em uma pensão barata. Que consertou os dentes moles e ficou trabalhando por lá. Não se sabia se voltaria. Melhor para ela e para o povo da travessa, ficar longe era saúde.

 

Maverick foi perguntando com jeito, quem era Tijuca, o que queria na tapera da abobé. Com um pouco mais de sabedoria, Byr teve soprado ao ouvido o que deveria responder. Contou dos tempos de aldeia, de como morreu Curuatinga. Contou que a abobé era parente. Que estava enterrada quando vieram ela, Isi’po e o Tamõi. Maverick quis saber do outro homem, Aín. Byr falou de como se encontraram e de como ele, santinho que era, ajudou a proteger Isi’po. As pedras enterradas, o nome que não podia ser dito, isso ficou no antúrio. No dia em que Byr pegou o besouro da flor amarela, esse nome virou carvão. Na tarde de entender as paixões, Byr intuiu que Maverick era cúmplice, porém não merecia saber tudo.

 

Byr guardou na memória a escrita importante. Não podia esquecer jamais sua sombra. Era como marca de ferro quente na anca. Um fantasma frio e pestilento vinha agarrado a este colar de letras. As primeiras aulas de soletração, sozinha na tapera, Isi’po no sono, Byr conseguiu reviver o nome. Compôs as letras no papel, escutou o som, guardou. Jogou a folha no fogo, como um batismo. Urubitinga acompanhou o rito lá do abacateiro. Nada disse. Ambos sabiam o que significa mexer com Yurupari. Era como a cerimônia de dobrar uma bandeira. Na travessa, no Juruá, Sorimã, Orinoco, no Canal de Suez. Qualquer lugar e voltaria a destemperança das relações. Abismos, cordilheiras, desertos, planícies de sal, piscinas ácidas, um azul incrível, sempre azul a dez mil metros de altura... Uraci flamejante é a bandeira. A camada de ozônio, a única proteção... as correntezas dos rios... e os pensamentos... os pensamentos expressos, redigidos, cantados.

Depois da conversa com Maverick, pura paciência entre canivete e bordo, veio um pássaro potente para Byr. Um pássaro que seguia com ela e a filha. A promoção dos consolos, dos vestidos lhe valeria alcançar seu monte. Ainda ia demorar. Byr sentiu a prata das mãos de Mãe-da-lua sobre as suas. Enquanto estudava, o vento soprou muitas luas passarão e a claridade limpará tudo. Nada ficará fora das correntes. Durará a braçada de uma margem. Nuvens brancas farão ciranda. Zumbidos de pífanos ecoarão. A Natureza terá os seus faróis enfunados.

 

Na próxima aula, Byr perguntou a Dona Tem pela primeira vez: como você se sente? Sinto faróis, foi a devolutiva. Byr disse que também sentia os seus. Sorriram e se debruçaram sobre o episódio da Inês de Castro[1].

 




[1] In Os Lusiadas, de Luís Vaz de Camões.

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