Vértebra 23
L4, a lenda do pirarucu ou a luta
Yauaretê linda, preta, brilhante. O que apareceu primeiro foram os olhos vermelhos, a chispar na mata.
Quarto-crescente no céu oferecia meia luz ao ambiente. O rio das palafitas e seu manto negro responde, coalhado de suspiro de pirarucu. Boto também pode estar a deriva, por perto.
As fabulações do ancoradouro balançam nas vozes aqui e lá de cantadores seresteiros, com suas violas de arame singelas, violas de cocho, de buriti. Zabumba também chora. Um pífano bem longe.
O menino Jovino olhava os toques, rasqueios, ponteados, dedilhos, repiques, inebriado. Alma velha tinha o corpo de nove anos. Estava nas estrelas que, pelos vinte, iria ao encontro delas. Iria o canto, o toque singelo, o amor incondicional pela mãe e, só entenderia quem vê através, uma saudade no coração de Isi’po. Saudade importante, que impulsiona, dá coragem. Faz seguir, amar outras gentes com amor profundo.
A Yauaretê espia na mata. Byr viu através. Testemunhou a história do Estado do Amazonas, o que ele significava para a Gaia. Por ser pulmão, talvez fumasse, até acabar. Um fole de madeira, de minério, de borracha e pasto. De artérias e veias cabais. O cérebro era em outra parte. O nervo vago, não sei. A Gaia, um dia, também ia acabar, tinha mais tempo.
Ali, entre os pescadores, sentou-se o Sebastião[1], calça nova de riscado arregaçada até o joelho, camisa de linho aberta, chapéu panamá, irmão igual e um toque de coração entre os eiru. Seria noite inteira de trovas, lendas, causos, assombros, risos e lágrima também, para temperar. Nesse espaço de ver e ver através, estavam Diakara[2], Wasiry Guará[3], Yamã[4], Thiago de Mello[5], uns desprendidos do sono, outro das pátrias gentis.
Mãe e filha, sentadas na soleira, olhavam juntas o rio, escutavam além. Aqueles faróis vermelhos deram corda à imaginação da uyra, que tagarelou em seu dialeto particular, ariramba. A mãe lhe explica que a Yauaretê tem fome, come pássaro, tatu, o que há de comer e apetece e fortalece. Que é cria de Tupã, merece carinho, reserva, cuidado. Guardiã. Doma Yurupari quando ele está mais calmo, leva para longe, para purgar.
Isi’po ficou paradinha alguns instantes quando Xaxim Verdadeiro lhe contou que a Yauaretê viera proteger a elas e outras gentes das palafitas. Que estava para nascer uma criança. Quando ela chegasse mãe, amoriquí, Betinho e Heloana iriam embora todos juntos. Que na mesma chacina, cairiam dois, inóspitos, a mando da Yauaretê. Seria noite de temporal, Yurupari estaria perto, rondando, deixaria seu cheiro de podridão.
Aos quatro anos, Isi’po já era capaz de compreender muito. Trazia a medicina no peito, dos tempos de curar em campo de batalha, com vinho e facão. Habituada às transfusões da mãe, aguardava o momento de raiar seus próprios unguentos. Byr, no seu jeito de ver através, contou que havia muitos Uraci, muitas Iaci, milhões de estrelas que eram casas como a Gaia. O Sebastião não viera de visita? Pois é, muitos precisavam ir visitar seus parentes e amigos que moravam longe. Ás vezes não voltavam iguais. Às vezes não podiam. Outras nem queriam. Alguns mandavam mensagem. E Tupã lidava nessa ciranda como grande maquinista da Mamoré.
A cantoria parou para escutar. Voz forcada, condoída. A senhora do desterro, a senhora do desterro mando-me agora a chamar. Fez-se intervalo longo. Quando as violas ensaiaram novo número, veio outra vez a mesma arenga. E depois outra. Depois parou. Isi’po perguntou à mãe com seus olhos e dedinho, o que era aquele chamado. Byr viu a jovem grávida, manto azul. Viu uma ilha que se chamou Nossa Senhora do Desterro um dia. Viu que a alma da criança que nasceria estava vindo de lá.
Xaxim Verdadeiro, que velara pela Indiara o dia todo, estava precisada de rede. A uirazinha aceitou o colo, o aconchego materno. Em sonho, visitou o pirarucu no fundo do rio. E lhe contaram, vários peixes alcoviteiros, que o boto-cor-de-rosa tinha ido dançar naquela noite. Algum pai e mãe ficaria chateado. Alguma filha prenhe.
Quem diria, tanta historia de índio guerreiro de Yurupari. Vinha esse, da tribo irmã Uaiá. Filho de cacique de boa índole saiu assim, nefando. Tinha visto a própria figura refletida no rio, apegou-se a ela como se fora Uraci em seu gigante nascimento. Inflado, o índio mangava de Tupã. Em desafio, tirou a vida a vários irmãos, sem razão. Um dia, mais vaidoso que em todos os outros, saiu para pescar. Tupã, no seu direito de aplicar as Leis, instruiu a Iururaruaçu a formar tempestade com raios, aplacando o presunçoso índio. Água, fogo e vento se uniram em tormenta exemplar. Como era de se esperar, o índio virou peixe, gigante e escuro e foi mandado a morar no fundo da água. Inconformado, ainda aterrorizou o rio por muito tempo. No caminho das águas veio a cachoeira das onças, lugar lá longe, nos confins das curvas, onde já viveu gente onça, comedora de gente. Gente não é só ruim. No legado desse mundo cruel ficaram remédios, a imposição das mãos e o jeito silencioso de falar com Tupã.
O ar ficou vazado de estranhas alucinações. Tão pesadas bonitas confusas que ninguém sabe se são as cachaças, as canções, o tangido das cordas dedilhadas, a voz, o olho cego ou a película do tempo espaço, aberta por breve momento, fenda obscura ou azulada, a avisar que muita verdade ainda virá, para aqueles que a consigam compreender. A terra, adocicada por tanto chorar, nutre o ventre lumiar do povo, gera perspectiva.
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