Vértebra 21
L2, Mãe-da-Lua ou a confiança
Isi’po completava quatro anos naquele seis de outubro. Era noite de lua cheia e havia harmonia na travessa, mais longe também. Um encontro sediado no rio era invisível para mortais comuns, mas estelar para gentes como sua mãe.
A criança comemorava isso junto ao arsenal de brinquedos de madeira. No futuro, esse contato com os seres invisíveis lhe seria precioso. Por hora, se contentava em representa-los nos cavalinhos, pássaros, tatus e outras formas, esculpidas pela mãe e também pelo novo amigo, Iqui.
A Indiara partilhava com a criança a energia dos brincos. Isi’po passava quase todo tempo ao seu lado. Maverick havia pendurado uma rede em um carvalho e deitava a Indiara lá por algumas horas. O gigante andava agora sempre por perto. Assim a moça tomava o sol da manhã, sentia as brisas e trocava impressões que só podem ser cantadas. Isi’po expandia seu mundo de aventuras perto da Indiara, às vezes em cima dela, especialmente na hora do descanso. Outras vezes, Maverick, Byr e Isi’po iam para o rio, para banhar a enferma, deixa-la experimentar as correntes que ali eram mansas. Nesses momentos, Mayara aproveitava a folga para descobrir a sonoridade do oud. Jovino, enfeitiçado, vinha até a palafita escutar, olhos compridos. Selim, sabedor desse enlevo, estava para fazer uma surpresa ao seu afilhado.
Xaxim Verdadeiro pouco compreendia os próprios desígnios, as habilidades que detinha. Fazia o que era necessário. Seus movimentos eram todos para a Natureza, um convívio equilibrado e acolhedor, de estreitar na palma o micróbio e a vitória-régia, o gavião e a surucucu. Tudo era razão para HA’EVEte. Em profunda comunhão com a lua, Byr obtinha das diferentes faces notícias, inspirações, forças renovadas, clarões. As letras dançavam em sua mente aberta, receptiva, seletiva. Aprendera a falar o português até com requinte. Maverick lhe trouxera dicionários, um do idioma nacional, um de verbetes em tupi-guarani e outro do português para o espanhol. Junto com Temístocles, Dona Tem para a comunidade, estudava com afinco, nos momentos em que era possível. Ia à palafita da professora com seu caderno, lápis, os dicionários e um livro. Este último, do baú da abobé.
Byr não vira mais Amerê desde aquele episódio do rancho. Sabia-o presente. Toda vez que um besourinho-do-bico-vermelho aparecia. Era nas saudades que ele chegava. Byr nem explicava. Aprendera, nos poemas que lia, muitas formas de saudade. Gostava das doces, as que não contavam tragédias, partidas. Respeitava essas facetas, entendia. Sabia que onde andava a lua andava o sol, um a merecer o outro. Sem um ou outro, a vida na Gaia estaria acabada.
Embora Maverick escutasse calado, era com ele que Byr trocava tais impressões, os dois vigiando os brincos de Isi’po, Jovino e mais duas ou três crianças que compartilhavam com eles o beira rio. A Indiara ao lado, estendida em uma esteira que Byr confeccionara. Depois do banho, Maverick e Byr secavam a moça com todo cuidado. Às vezes a deixavam sem as vestes, para que a pele, desnutrida, arejasse. As crianças paravam para assistir a esses cuidados, um sentimento de ternura no ar. Ajudavam, também, no pentear os cabelos, alisar as costas, as pernas, do jeito que Byr fazia. Em algumas ocasiões, todos se afastavam um pouco e então Maverick estreitava aquela criatura cada vez menor em seu colo e a ninava, cantando uma única canção que sabia, o Old man river[1]. Na primeira vez que escutou, Byr chorou. Depois, ao estudar a tradução com Dona Tem, fez um mergulho profundo no conhecimento dos seres, como eram todos ajuntados, como se as mãos devessem estar sempre unidas.
Na noite de lua plena, uma reunião nova acontecia no rio. Nova, trazia seres novos. Os que acompanhavam cada uma das gentes de Eirunepé, o benfeitor da região, o benfeitor do rio e seus afluentes, das matas, dos animais, o benfeitor da Amazônia. A presidência do encontro era do protetor da Gaia. Xaxim Verdadeiro foi levada ao local em sonho. Ali estava também Amerê, ao lado de sua mãe Ododo, de seu pai Fayola. A mãe de Byr na jornada, Bartira. Curuatinga, lindo e perfilado. Ao seu lado os irmãos da tribo, os que não voltaram. Outros representantes de várias nações. Pablo, Lorca, Alves, Bilac, Assis, Meireles, Rosa, a Alcayaga, Cela, Benavente[2] e outros escritores. Gentes de muitos lugares, há muito levadas a outros mundos, com outras luas, outras gravidades. E outras trazidas em sonho, como Byr.
Mãe-da-Lua apartou-se do grupo por alguns instantes. Tomou as mão de Xaxim Verdadeiro entre as suas e contou o que viria: o nascimento de uma criança que ela, Byr, deveria criar. Alguns não entenderiam, inspirados por Yurupari. Haveria um breve período de gastura. Era preciso fortaleza, sensibilidade e confiança. Tudo seria decidido por Tupã. Que viesse ao rio todas as noites, para banhar-se e conversar. Aqueles seriam os dias de drenagem. Ali, os destinos da Amazônia estariam sendo traçados. Ao acordar na manhã seguinte, Byr percebeu na perna direita caprichosa marca, próxima ao tornozelo, mordida de algum bicho.
[1] Ol' man river
That ol' man river
he must know something
But he don't say nothing
Cause he just keeps rolling
He keeps rolling along
He don't plant tators
He don't plant cotton
Them that plants 'em is soon forgotten
[2] Pablo Neruda, Federico Garcia Lorca, Castro Alves, Olavo Bilac, Machado de Assis, Cecilia Meireles, Guimarães Rosa, Gabriela Mistral, Camilo José Cela, Jacinto Benavente.
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