Vértebra 19




T12, Gralha Azul ou a pureza

 

A ave estivera engaiolada durante vários dias. Viajara muitas jardas sem comer ou beber, na caçamba de um caminhão. Vinha acompanhada de uma multidão de irmãos raros. Todos vexados, calados. O intuito do contrabandista era entregar a carga em uma propriedade no Acre. O homem concluía o trajeto, final da BR364, quando rodou na pista cinco vezes e tombou no acostamento. Ficou sem sentidos por algumas horas. Quando deu por si estava despido, descalço, o caminhão devassado e todas as gaiolas destrancadas. Nenhum pássaro a vista. As viaturas chegaram a seguir e foi sua sorte. Sem documentos, pode inventar que eram galinhas sendo levadas para uma granja. Os pretensos assaltantes levaram também o combustível e as armas de que dispunha. Uma Magnum, um punhal, um facão e uma espingarda de cano duplo. Aos policiais, só declarou o facão. Não tinha porte de arma. Deu seu nome verdadeiro, não era fichado com ele. Foi levado na viatura para o posto mais próximo, onde aguardaria o guincho. De um telefone público, narrou o sinistro ao comando. Depois de escutar poucas e boas, soube que havia para ele uma escaramuça mais tinhosa a cumprir, em paga ao prejuízo causado. Jiréu não pode se imiscuir da missão. Ao menos não agora. Tinha muitas dívidas de jogo. Por alguma razão, lembrou-se do último pássaro que apanhara na Serra da Graciosa. A ave estava adoentada, foi fácil tocaia-la na araucária. Sabia que o espécime poderia morrer no trajeto, mas ai já não era problema seu. Um urubu-de-cabeça-amarela, empoleirado na antena do posto, fixava a expressão cretina de Jiréu. O gemido doloroso, engasgado, fazia os ossos gelarem. O contrabandista, pouco dado a reações, dessa vez se encolheu no banco onde estava, dizendo esconjuro. Jiréu não temia a morte. Temia o fogo do inferno.

 

O caminhão chegou meio fora do eixo, sem geometria, sem o farol dianteiro esquerdo e Jiréu foi liberado sem averiguações. O malaco teve o lampejo de se embrenhar por rodovia secundária. Dali daria um jeito de passar o veículo adiante. Com algum dinheiro, tomaria um vapor para a Colômbia. Lá tinha conhecidos, se arranjaria. Das maçadas que fez, depois de alguns dias foi dar em Eirunepé. Embrulhada depois de embrulhada, tinha seis mil reais e documentos frios para cruzar fronteira. Pusera uns pentes de plástico e umas balinhas na valise, passaria por mascate até poder evadir-se. Jiréu não prestava como nome de bugigangueiro. Batizou-se Zé Coli. Jiréu não notara a presença soturna do urubu-de-cabeça-amarela em seu encalço. E agora já não era só esse, mas um casal de urubu-rei, um macho cabeça-preta, um cabeça-branca, um uruxibá. Todos velados na mata, roncando sem alarmar. Um murucututu se juntou ao bando. 

 

Sá Ana sentiu um arrepio longo, extenuante. Teve medo como há muito não sentia. Chegara aos cinquenta anos, podia viver mais cinquenta sem fraquezas. Diferente de Byr, que via e ouvia os mortos, Sá Ana preferia o oficio de dar à luz. Um besourinho-do-bico-vermelho que voejava em torno de um cajueiro apaziguou seu peito. Ela teve vontade de prosa e chamou Catira na cerca. Não falaram de nada ruim, só dos bilros, do assado, dos meninos por nascer. Nem do velho Selim lembraram. Nisso ia descendo a travessa o Zé Coli, todo sonso com sua valise. Foi Catira quem escutou o Urubitinga roncar. Kadosh de longe gritava ‘si’po ‘si’po ‘si’po Tetêeee. O tiriba-fogo arremedava os sons mais próximos, agitado no seu poleiro. Sá Ana sentiu o arrepio outra vez. E correu travessa acima, sem dar tempo de Jiréu a interpelar.

 

Sem fôlego, vermelha feito o tiê, Sá Ana entrou e tirou Isi’po do chiqueirinho onde brincava, próxima da Indiara. Apertou a criança contra o rosto, aliviada. Pediu a Mayara que não descuidasse dela nem da filha. O pavor era tanto que Mayara fechou os postigos da palafita. Sá Ana foi atrás da Conceição que era moça, mãe do menino Jovino. O peralta rodava pião e estranhou o alvoroço. Sá Ana disse corre menino, vai pra perto de Byr no rio e fica com ela até eu mandar chamar. Diz que está tudo bem com Isi’po. Pela segunda vez o menino entendeu perigo iminente e obedeceu. Enquanto isso, Conceição corria todas as casas do entorno que tinham bebês, crianças, adolescentes, para que as mães os mantivessem junto de si, até o aviso de calma soar. Na dúvida, todo mundo obedecia a um comando tão assisado. Sá Ana voltou para casa feito bisão. Jiréu tentava empurrar um cosmético para Catira, emagrecedor potente. Selim saíra à varanda, levemente fisgado, como se um mosquito o estivesse a importunar. Quando deu com Sá Ana e seu rosto muito pálido na mureta, foi para dentro. Discou um número em seu antigo aparelho telefônico e esperou. Jiréu já ia desistindo de persuadir Catira quando um homem muito encorpado, de cabeça raspada e pose de halterofilista veio se achegando. No braço, trazia tatuado o urubu-de-cabeça-amarela. Jiréu ainda quis graça, ofereceu loção capilar, mas logo entendeu que, se voltasse àquelas bandas, estaria lascado. O fisiculturista quis ver as balas que o mascate trazia. Jiréu desconversou. O homem insistiu. Pegou uma, desembrulhou e a colocou com uma delicadeza impensada na palma de Jireú. Põe na boca, ordenou. Jiréu, apavorado, encurralado, não teve saída. Maverick, assim era a alcunha do grandalhão, desembalou mais cinco e enfiou na boca do rufião, uma a uma, com argúcia. Lacrimejando, Jiréu começou a sentir o torpor. Eram seis boa noite cinderela, para derrubar vários cavalos. Jiréu apoiou-se na murada, em luta para não desmaiar, mas logo estava entregue. Soerguido por Maverick subiu a travessa, foi colocado no porta malas da perua velha e seguiu para sabe-se lá onde. 

 

Sá Ana ainda esperou um par de horas até desfazer o alarme. Pássaros do Brasil inteiro começaram a se concentrar no reduto. Parecia uma convenção, das grandes. Para surpresa de todos os humanos, a passarada se mantinha em silêncio e se portou melhor que qualquer gente. A honorável gralha-azul havia virado pureza de céu. As aves companheiras guardavam luto por ela. 

 

Soube-se, algum tempo depois, por reportagem reprisada amiúde, que um homem de identidade desconhecida foi encontrado em posição fetal, nu, dentro de um contêiner blindado, na esteira rolante do aeroporto de Guarulhos. Ainda com vida, atabalhoado, foi encaminhado à delegacia para averiguações. Trazia nas mãos fechadas dois pacotes de boa noite cinderela e algo mais em seus orifícios. 

 

Na mesma época, Byr já enunciava períodos inteiros sem se atrapalhar, muito compreensíveis e ricos de conteúdo, em português. Foi então que começou a tomar aulas com Dona Tem, a professora primária que morava no cabeço da travessa. 

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