Vértebra 18
T11, saíra-azul ou a leveza
“A tristeza, para o espírito, é como a água para o corpo. Se sentimos sede e não a bebemos, desidratamos. Se não sentimos tristeza, não percebemos a falta de espírito na alma.
De que adianta uma alma vazia, um corpo desidratado? Quem não se entristece, precisa rever a sua própria existência pois, talvez, a falta dela seja um abandonar-se. A tristeza tem a conotação de valorizar tudo o que houve e tudo o que há de vir... ou, então, morrer!” [1]
Benavente apreciava o Sorimã da copa de um cambuí e vinham-lhe lampejos do seu príncipe. Aín tinha sumido sobre as águas e, como o escritor nada podia fazer por aquela alma, ficou para trás. Quem sabe viessem ordens de ciceronear outro desesperado que estivesse em prisão e pudesse ser encaminhado para algum reduto renovador. Tantos humanos em trânsito, tantos adormecidos, mortos vivos, aparentemente sem função, ou conexão.
Benavente tomou carona em um saíra-azul, no vácuo de seu voo. Quis saber para onde iria a ave, em que estaria a trabalhar. O escritor se perguntava o que, realmente, o trouxera de tão longe à floresta. As viagens descobridoras? Os ancestrais desbravadores, origens perdidas às quais ele só tinha acesso pela imaginação? Sentia falta. Em especial da Alcayaga. Fora um período bom o que os três escritores viveram, sem amancebar-se em simbioses, apenas compartindo literaturas e olhando a história do rapaz franciscano que cruzou o Atlântico para dar em Pernambuco. Foi cair, o santinho, em um convento dedicado a Santo Antônio, na Ilha Antônio de Vaz. Veio primeiro Cela a lhe fazer companhia, atraído pela estupefação do rapaz quando lia A família de Pascual Duarte. Benavente veio em seguida, também atraído pelo lirismo da frase "O amor é como Dom Quixote: quando recobra a razão, é para morrer." Mais adiante chegou a Alcayaga, a procura de um filhinho, a procura da poesia. Ficaram os três entretidos com a escassez de perspectivas de Aín, concentrados quando ele auxiliava sofredores pelo interior do país em troca de algum alimento. Cada um dos escritores a mirar um ponto, a fim de enredar um poema, uma história que cumprisse bem seu destino. E agora haviam tomado fios de vento distintos. Há vários rumos, refletia Benavente. “Aprendí que es preciso soñar cosas bellas para realizar cosas buenas. ¡Gloria a mis cuentos de hadas! ¡No maldeciré nunca de ellos! ¡Felices los que saben hacer de su vida un bello cuento!” [2]
O saíra-azul aterrissou em um limoeiro já habitado, harmonizou logo, apresentou-se. Disse trazer notícias do Alto Xingu, onde havia um herbanário incalculável. Sá Ana recebeu a missiva e olhou em suas caixas. Encontrou gengibre feito pó e erva-damiana seca. As poções foram ministradas a Byr uma de cada vez, em doses espaçadas. A índia recuperou-se ligeiro. Era quase menina, apesar do corpo maduro. Isi’po se enredava naquele contexto de êxodo, avaria e ia leve, nas asas dos pássaros. Kadosh grasnava pelo pântano, para a euforia do bebezinho. Foi o pássaro azul quem testemunhou seus cinco primeiros passos firmes, início do muito caminhar. Kadosh lhe chamou ‘si’po ‘si’po ‘si’po. A criança, encantada, batia palmas e seu nome foi a primeira palavra que balbuciou.
Na palafita à direita de Byr, a voz de Mayara lembrava saraus palacianos. Ela chegara há pouco em Eirunepé, com uma filha de vinte anos, a Indiara. A moça não saia da rede, tomada por uma paralisia de corpo inteiro. Linda mulher. Não falava, não escutava, não enxergava. Só sorria. Linda! E era regozijo da mãe tornar a vida da filha uma riqueza. O bonito é que as canções eram inventadas na hora, sintonizadas aos movimentos do entorno. Benavente encontrou ali a Alcayaga, a soprar inspiração.
Amanheci pensando, qual canção irei cantar? A chuva convidava a ficar quieto e ouvir. Lembrei dos rostos que conheço, também dos que nunca vi. Era bom que viesse uma cantiga terna. De luz e lenha e calor. De surpresa, de sopro resistência, de coragem. Só achei cantigas tristes, cheias de luar. Então tramei rosa, graciosa, camélia. Cantiga do vento embalar.
Xaxim Verdadeiro parou diante da porta, atraída pelo canto e pelo cheiro bom do ensopado. Há dias comia as papinhas de Isi’po. Sentiu o apetite aguçado, bem como desejo de proximidade. Mayara, gentil, convidou-a para a ceia. Ao olhar a Indiara, uma onda de calor invadiu o corpo de Byr, como se recebesse visita extremosa. Pediu permissão à mãe e impôs as mãos sobre os olhos da moça. Não poderia fazer muito, mas aliviaria a tensão da região, minimizando as dores que a moça sentia e não podia revelar. Mayara ficou hipnotizada com a cena. Quando Byr concluiu seu gestual, pediu novamente permissão e pousou as mãos sobre os ombros de Mayara. Foi como se retirasse mil quilos, como se desamarrasse da canga o peso do mundo. Assim as duas mulheres se apresentaram. Conversaram em tupi e português. Isi’po, que caminhara sozinha atrás da mãe, subiu na rede da Indiara e aninhou-se sobre o peito da enferma. Um belo sorriso iluminou as faces de ambas. Mayara colocou os braços da filha em volta do bebê e percebeu uma leve estremeção. Benavente, pela primeira vez, estreitava a Alcayaga em seu campo sutil. Ambos disseram, comovidos: suicídio. Logo cumpre o período, depois segue, feito todos nós, Benavente completou.
Comentários
Postar um comentário