Vértebra 17



T10, sabiá-una ou a liberdade

Fazia tempos, a Alcayaga deixara de flanar sozinha. Acomodara-se à companhia dos colegas escritores. Soubera que estava em novo plano quando os encontrou, numa roda de livreiros tão insólita que precisou perguntar. De nada sentia falta, a não ser da poesia. Naquele instante, o olhar pousado no Juruá, a poeta recordou o início de sua cantilena ao anjo guardião[1]. Comoveu-se. Como viera parar naquela floresta, isso lhe era desconhecido. Para onde rumava, se procurava alguém? Não tinha mérito para saber. Mirou mais um pouco as águas barrentas e sentiu-se levitar; até que encontrou um bairro de palafitas. Já estivera ali.

Lembrou-se. Foi naquela madrugada em que Aín tomara a moça. Era à jovem nua que a Alcayaga se dirigia agora. Um ímã, uma comoção, um afeto longínquo. A possibilidade das alegorias. 

Passada a ciumeira indébita, Catira fora visitar Byr na tarde seguinte ao banho do patrão. Encontrou-a com cheiro repisado de amônia, o olhar um tanto duro e uma quietude tensa. Byr sabia cuidar da aura circundante. Algumas vezes ela cairia e sabia que sim, muitos tropeços teria de curar. Embrenhar-se em mesquinharias, faria o possível para evitar. Catira lhe estendeu uma travessa pequena com doce de cupuaçu. A vasilha vinha coberta com um pano muito alvo. Byr aquiesceu e a convidou para o interior. Comeram o doce, quietas. Isi’po dormia, tivera uma febre suave. Catira trouxe também a almofada e os bilros e perguntou se Xaxim Verdadeiro gostaria de aprender a rendar. Passaram duas horas nos primeiros movimentos. Catira deixou os apetrechos no tamborete, voltaria outro dia para continuarem. Que Byr seguisse, firmando os nós dos primeiros pontos. A índia tinha mais mão para balaios, para pilar.

A Alcayaga, que acompanhara todo o ensinamento, cantarolava uma toada chilena ao ouvido de Isi’po e com isso afastou a febre que queria se aboletar. Sabendo-se visitada por entidade casta, Byr fez uma reverência e serenou o peito. A noite caia com seu manto estrelado. Entrou outro poeta pela janela a recitar ora, direis, ouvir estrelas. A índia,  disposta a absorver aquele alento, cozinhou um guisado e inventou uma cantorina para Aldebarã. Seu ventre, um tanto dolorido, dava a Byr o juízo de sua função na Gaia. Haveria os que diriam se tratar de mau hábito, luxúria. Os dois poetas, com quem intuía naquela lonjura que era a administração da jornada, lhe segredaram versos de alívio. Já tivera o seu quinhão de argila, agora era mesmo legislar pela vida de seu bebê nascido, ter de onde prover alimento, educação. Algo naquela noite inundou de marcas profundas o pensar de Xaxim Verdadeiro. Além da renda, das curas, do peixe salgado, precisava dominar a fala e a escrita do idioma da região. Queria saber o conteúdo dos livros, queria entender as frases dos brancos. Quem sabe as dos pretos que se reuniam em terreiro não muito afastado, a bater seus tambores. Só assim poderia organizar as falas dos índios. Byr só conhecia, pouco, a língua de seus irmãos postiços, quase perdida no mapa de diásporas. Sem idioma, sem defesa.

Uraci já sorria entre o rio e a palmeira quando o sangue escorreu entre as pernas de Xaxim Verdadeiro. Com ele, a expulsão de pequena forma carnosa que se afigurava um sabiá-una, pela coloração muito azul. Byr chorou e foi mergulhar no rio. Do meio da mata, o piado profundo vem aqui vem, vemvemvemvemvem meu bem cruzou a travessa. Sá Ana logo apareceu. A Alcayaga suspirou, tudo era encadeado pela poesia, lá e cá.



[1] Não tenho um Anjo só,/ de asa estremecida:/como embalam o mar/duas ondas erguidas,/tenho o Anjo do júbilo/e o Anjo da agonia,/aquele de asas trêmulas/e o outro de asas fixas.



 

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