Vértebra 16


T9, sanhaço-frade ou a harmonia

 

Todo cuidado é pouco quando se trata de trilha de Yurupari. É ciclone. Não era preciso contar nada a Catira. O cheiro da amônia lhe abrira o coração para o Bom Jesus do Iguape. Ela sabia uma reza curta, rezou várias vezes diante da imagem em seu puxadinho nos fundos da construção. A índia, agora abrigada na casa do patrão, brilhava aureolada, como se revestida do manto virginal. Mesmo sendo mãe. A moça era doce, tranquila, cheia de poder benéfico. Merecia sossego. Yurupari era de passagem, como vendaval sem chuva. De outras coisas Catira não entendia. Sentia as espreitações da morte, respeitava-lhe a visita terminal, não tinha medo. Mesmo quando o patrão deu pistas de ir com ela, Catira sabia que Xaxim Verdadeiro se entenderia com a escuridão. Talvez fosse esse contato a sintonizar o verdugo frio. Jesus do Iguape haveria de estender suas mãos bondosas sobre Eirunepé. Nem as doenças, nem as concupiscências, nem as malícias, nem a perversidade de homens desesperados fincaria ali raízes. Foi o que pediu ao crucifixo, com todo seu coração e saber. Teceria para o Bom Jesus um belo corpete de renda, para cobrir suas chagas abertas. 

 

Naquela noite de chuva, Catira mais rezou que dormiu. Percorreu seis vezes o rosário. Pela manhã, ao contrário do que se esperaria de noite em claro, estava repousada. Também inspirada por força nova, enfrentaria o que fosse. Assim caminhou até a palafita onde Byr e o bebê moravam. Não se surpreendeu ao encontrar Cândida moída de pancada. Lavou-lhe as feridas com cavalinha. Seria preciso tomar embarcação para ver o estado dos dentes. Ali naquele vau onde moravam, não havia dentista ou médico. 

 

Sá Ana, que soubera de todo tornado veio também, munida de unguentos e rendeu Catira, a quem recomendou voltar para perto de Selim. O sanhaço-frade repetia que repetia que repetia vinde-os-cansados-famintos-os-fracos-gemidos-os-sem-ninguém. Tudo conspirava para que algum tempo de paz talvez perdurasse. A situação não compactuava com miasmas, mesmo que os pântanos recendessem a humus. Não era aquele tipo de dor que levantaria Eirunepé. 

 

Quando Catira retornou à casa do patrão, Byr se tinha banhado e brincava com Isi’po. Selim estava sentado em um cadeirão, vestido e banhado ele também, a cochilar. Ao lado dele, uma caneca de caldo de batata baroa pela metade. Num relance que a fez corar, Catira enciumou. Um raito, um nada, careceria rezar mais um terço. Ali mesmo, diante do patrão, sem mover os lábios, rezou uma Ave Maria. 

 

Sá Ana chamou Byr na mureta da casa. Byr foi logo, já tinha cumprido seu papel naquela história. Enquanto Catira esteve fora, Xaxim Verdadeiro tratou de apagar seus rastros. Lavou o lençol, a colcha, abriu a janela do quarto onde dormira, queimou um pau de canela e louro. Retirou o balainho com suas coisas para o avarandado. Sá Ana dando o sinal, foi só calçar os chinelos e pôr Isi’po diante de si. Se conviesse, voltaria depois ou a um novo pedido de Catira. Byr aprendera com Orun a ser invisível. Na goiabeira do caminho, parteira e índia e bebê muito quietas, o sanhaço-frade entoava seu refrão.

 

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