Vertebra 15




T8, Kadosh, a ararinha da Tetê, ou a maestria

 

Sem hábito, sem energia de imposição, há muito que Aín não rezava. Não era caso para banzo, mas foi o que se deu com o homem tão afinado antes com a mata. Parecia que Tupã havia dado as costas, mas era o contrário. Aín posava de mártir. O encontro com a índia tinha aberto no corpo uma cicatriz que ele julgava sublimada. Não era pela noite, mas pela forma como se despediu. Pungente, ácido. Nem se reconhecera. Aín sabia que perdera o dom assim que despertou ao pé da palafita. Acovardado, embrenhou-se no pântano que o rio formava sem olhar a mulher nua tombada ao lado. Deveria agradecer, sentiu repulsa. Não pode suportar os olhos todos que, ele julgou, o miravam. O mais duro era o olho de Uraci, fosco, de quem não era possível se esconder, a menos que se metesse em uma caverna ou porão de navio. 

 

Passamos as eras nos atrapalhando uns aos outros ao invés de nos amparar, argumentava a Alcayaga, sentada na paliçada entre Cela y Benavente. Daí os premidos, os violentos e agora me vieram os indolentes, os mais difíceis de lidar. Cela aquiesceu e permaneceu calado, a lembrar de ira e de Lázaro Codesal[1]. O trasno, ao lado de Aín, mexia distraído na sacola de juta, a espera de que se abrisse a garrafa de cachaça ou se enrolasse um palheiro. Aín, sem ânimo, estendeu-se na canoa e esqueceu de amarra-la à margem. Os poetas se deixaram ficar, sentados, os três. O trasno nada notou, deslumbrado com os brilhinhos dentro de uma lata descuidadamente destapada. 

 

Quando Aín deu pela notícia, era sempre assim, o Solimões entrara na pororoca. Água amarela de um lado, água preta de outro, nada de terra. Há tempos Aín sentira frio, mas não como agora. O céu parecia que despencava a qualquer momento, nimbado. Aín lembrou-se de gritar Dios, Dios, Dios, ajoelhado em meio à canoa. O trasno arengava Dios Dios Dios, ahora Dios Dios Dios. A entidade moleira era fraca em aconselhar, dava mais de mangar. A companhia lhe agradava, contudo, e o trasno passou a cantarolar uma quadra marota de Trás-os-Montes, a saia da Carolina[2].

 

Parece que o frei, agora aveiro, deu algum sinal de melhora. Tomou dos remos e tocou pela parte amarela do rio, seguindo por ela onde balançava menos. O esforço mexeu com seu ventre, que logo explodiu em louro salobro. A partir daí o aprendiz recompôs-se, atilou seus pensamentos e passou a entender o curso. Estava em prova. Para perder-se era só permanecer pusilânime. Para regenerar-se, trabalho. Olhou a sacola do lado, viu a lata aberta. Soltou o remo para a fechar. Caminho torpe esse, mas Aín era tudo, menos tolo. Pena.

 

A canoa oscilou e logo retomou a corrente. Por ali o homem daria no Orinoco, mesmo que demorasse. Assim, como nimbado, o céu foi abrindo uma coroa de luz sobre o rio. Por ora, nada de tormenta. Aín rezou para Santa Sarah, segundo ele, protetora de los recursos materiales. Estavam a sós os rios, as pedras brilhosas, o aprendiz e o trasno. Na dúvida, Aín adquirira uma carabina, que também mourejava ali. Ninguém diria que aquele homem já fora frei de cura, embora ainda chamasse a atenção seu corte de cabelo. Tratou de sumir os cachos louros a navalhada.

 

Deitada pela primeira vez em uma cama, Byr olhava as pás do ventilador de teto como quem olha um cardume ou voluteio de biguá. Noite sem lua, suarenta, tudo quieto. O quarto era maior que a palafita onde habitava, a janela dava para a mata. O vidro estava fechado, ameaço de chuva, ia molhar o tapete mourisco se fosse aberto. Um ou outro raio clareava, produzia sombras. Catira havia mostrado o banheiro, como usar o vaso, como acionar descarga, abrir torneira, chuveiro. Byr lavou as mãos com sabonete, brincou com a escovinha para os dentes, bebeu água direto da pia, lembrou-lhe cachoeira. Banho, tomaria outra hora. O lençol cheirava a açucena e estava úmido. Havia um espelho grande na parede, sobre um velador. A índia desviou os olhos dele. Se pudesse, o taparia. 

 

Isi’po ressonava, também para ela era novidade o lençol, o colchão. Ela sim fora banhada, rira com gosto da água que brotava do céu da construção, em tufo pequeno. Cabia mais uma pessoa na cama, com folga. Travesseiro, Byr deixou em uma cadeira, não sabia seu uso, não quis perguntar. Não teve curiosidade em abrir o guarda-roupas de onde Catira tirara as peças para cobrir a cama. Havia um belo trabalho de bilro que protegeria o corpo, caso esfriasse. Catira deu também camisola, mas dormir era o momento de sair da puca. As mãos de Byr tocavam o próprio ventre, algo de bulício. Por não ser bom, Byr consolou com imposição. Logo ficou quente o local e ela pode, enfim, repousar. Deixara o velho Selim com sonhos tumultuados, regados a tília. Quem sabe pudesse dormir até o raiar do dia. Cinco homens brancos contornaram o mosquiteiro. Mais um se achegou ao pé da cama, chapéu quebrado na testa. Deles se via os olhos opacos e as mãos, pendidas ao lado do corpo. Desde que ficassem onde estavam, como estavam, podiam olhar, Byr cheirava a urina e flor, combinação enjoativa, cabelo espalhado no lençol. A renda apagou os homens quando Byr a puxou sobre si. Aí sim foi bom. 

 

Ao acordar, Byr viu o corpo todo refletido no espelho. O ventre levemente abaulado perto do monte de vênus. Os seios, ainda firmes, um tanto cheios. Viu a faixa de urucum bem delineada sobre os olhos. Com os dedos, ajeitou a cabeleira em desalinho. Meteu-se no vestido de flor, o de pássaro trouxera no balaio. Contentou-se, mesmo exalando amônia. Isi’po arrulhou, apontando o dedinho para a janela, onde a arara azul batia o bico. Dava para ouvir a conversa dela com a mulher de voz muito aguda. Era Tetê, que andava pela região com seu companheiro, um prendedor de sons pendurado na cintura. Kadosh, Kadosh, a Tetê entoava. Kadosh, Kadosh, Tetêe a arara devolvia. 

 

Catira, mais compreensiva que uma mãe, não fez perguntas a Byr. Notou que a índia comia com fome o desjejum. Selim despertara lúcido, quis até o angu de farinha. Perguntou da índia, perguntou do cheiro de amônia. Catira despistou, para não aborrecer o velho. Disse que o bebê vomitara no vestido. O velho deu de ombros e voltou a dormir, agora mais sossegado. Logo estaria de pé. Catira deixou Byr e a menina no terreiro, a olhar a chuva; subiu a travessa. 

 

A índia contara de Tijuca como pode. Catira já conhecia o homem, ele tinha fama na comunidade. A senhora passou pelas taperas de olhos estreitados. Nenhum movimento. O espaço da abobé remexido, nada quebrado lá dentro. Quando Catira espreitou para dentro da palafita de Cândida, esperava mais estragos. Viu rastros de sangue. Mayara, a vizinha do outro lado, entrou atrás de Catira. Agora não teria mais medo de socorrer. Contou, meio chorosa, da briga que ouvira. Na rede, uma Cândida a sangrar, desfalecida. Catira a reanimou com vinagre, deu água como foi possível. Cândida não podia falar direito, tinha os dentes da frente partidos e os lábios feridos. Tijuca havia saído atrás dos homens que Cândida delatou, entre sopapos. Ela jurou que não falara de Xaxim Verdadeiro ou da menina.

 

[1] Referencia ao livro Mazurca para dois mortos, de Camilo José Cela

[2] A saia da Carolina
Tem um lagarto pintado
A saia da Carolina
Tem um lagarto pintado

Sim Carolina ó - i - ó - ai
Sim Carolina ó - ai meu bem
Sim Carolina ó - i - ó - ai
Sim Carolina ó - ai meu bem

Tem cuidado ó Carolina
Que o lagarto dá ao rabo
Tem cuidado ó Carolina
Que o lagarto dá ao rabo

 

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