Vértebra 13


T6, besourinho-do-bico-vermelho, ou a clareza

 

Isi’po ensaiava os primeiros passos no terreiro e arrulhava. Quem a entendia eram os pássaros. Byr tudo atendia, contente. Puca boa. Com a vizinhança, a índia ia se irmanando, trocava consolo e peixe salgado por galinha, farinha, frutas. O silêncio e a cantoria de Byr, misturados, criavam as mais variadas saúdes. Todos achavam bonito. Parecia que Sá Ana empurrava a vida e Byr amparava a morte. 

 

Assim servida nas precisões, a pesca era o momento de Byr refazer seu fluido, pelo menos nos dias em que Cândida não ia atrás, em tagarelices. Isi’po sempre no balaio, com seus toquinhos de madeira para entreter. Byr ensaiava as primeiras respostas monossilábicas, já pensava frases inteiras na língua que a maioria dos brancos, índios e pretos da região usava. Exceto o velho da parabólica, o senhor Selim, descendente de turcos, natural de Cartagena. 

 

Byr foi chamada por Catira, a mulher obesa. Era dia de chuvaredo. Tinha amansado um pouco quando a senhora chegou, torcendo um pano entre as mãos. Byr ia colocar o balaio às costas, mas Catira se ofereceu, levou Isi’po nos braços. Foram as três acudir o Selim, que caíra no terreiro sem respirar. Sá Ana tinha ido ver uma futura mãe enfarada no outro bairro. Ao passar pela parabólica, Byr olhou encantada. Amerê lá em cima, com o velho Selim no colo, a soprar. Só que agora o Tamõi era moço preto azulado, longo como carvalho, e como sorria bonito. Byr esperou, para não assustar Catira, que ia se dar conta de bruxaria ou coisa ruim. Ficou perto do corpo de Selim, a alma do velho a dormir no colo de Amerê. Quando deu a hora, Byr passou a soprar o rosto do homem e fazer movimentos longitudinais com as mãos ao redor da cabeça, do tronco, das pernas. Catira ouviu como ela cantava para a morte, como era carinhosa e tinha respeito. Logo a alma de Selim veio se deitar no corpo, um pouco arreliada, parecia melhor liberta. Antes de deitar de vez, Selim acenou para Amerê, que virou num besourinho-do-bico-vermelho. Ao  voar, Amerê mandou Selim plantar um pé de araçá e um jardim de roseira naquele terreno nu. Só assim Amerê poderia visitar. Meio contrafeito, Selim voltou a respirar e deu com a cara serena de Byr. Plantaria o jardim. O silêncio se fez unguento e o velho dormiu, de roncar. 


Catira ajudou a deitar Selim em sua cama de dossel. Tiraram a roupa molhada, puseram o camisolão. Byr esquentou duas pedras e encostou na sola dos pés do velho. Deixaram o homem sem coberta, fazia calor. Catira acendeu o vento no teto, que trouxe frescor ao ambiente e espantou mosquito. 

 

A cozinha do rancho de Selim era boniteza pura. Catira foi colocando em uma cesta coisas que Byr não tinha: um pote de mel, banha, curau, carambolas, um pedaço de carne de sol, cebolas, alhos, uma latinha com manjericão e outra com louro, pequeninos ainda, mas cresceriam em latada maior, na janela. Uma garrafa de leite de cabra. Suco de gabiroba. Caju. Byr olhou aquela riqueza toda e corou. Catira disse que era pouco. Foi em outro cômodo e trouxe algo que Byr nunca vira. Uma almofada de renda de bilro, fios e alfinetes. Explicou com vagar que era uma tarefa para fazerem juntas, nalguma hora em que as duas estivessem desincumbidas. Byr tocou nos apetrechos. Catira trouxe ainda uma saia de renda, trabalho muito delicado. Contou que era da filha, que casou e foi morar no sul. Byr alisou o tecido, mais um encanto naquele dia. Com as palavras que tinha, avisou que voltaria a noite, para ver o velho. Agradeceu e tocou o rosto de Catira. A senhora sentiu uma onda elétrica quase repulsiva de tão intensa. Seu lumbago parou de doer na hora. 

 

Byr voltou pela travessa, acompanhada do menino Jovino, um aparentado de redemoinho, que lhe carregou a cesta e acabou por ganhar caqui. Byr escutou Isi’po a fazer festa com o besourinho-de-bico- vermelho. Era a décima sétima hora e Cipó não chorou. Mais um encanto naquele dia, só que esse de natureza diferente. Um raio traspassado, do coronário ao sacral. Encostado na balaústra da tapera de Cândida, chapéu batido na testa, pitava um palheiro o Tijuca.

 

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