Vértebra 12




T5, corruíra ou o conhecimento


Ao passar pela construção do velho da parabólica, Byr deu de reparar nas diferenças. Paredes caiadas. Teto coberto com folhas de barro, onduladas. As janelas não eram desvão, eram simuladas. Algo brilhoso, que deixava ver a sombra das nuvens. Byr olhou adiante, para constatar que o corruíra estava era na ingazeira. A índia achou que a janela era feita do mesmo jeito que o espelho da abobé, só menos nítido. O chão em volta da construção era  batido. No terreiro do velho da parabólica não crescia mato nem flor. Lá no fundo, uma senhora obesa prendia roupas no arame farpado. 

 

Byr apressou o passo bem na hora em que o velho apareceu, com um palheiro entre as gengivas. Sá Ana dava com a mão, pedindo ligeireza. Em pé no meio da sala, Saraiah pingava de suor. Duas olheiras fundas e a cara branca estalavam-lhe os olhos. Byr deu o balaio a Sá Ana, que saiu com Isi’po para o terreiro, a cantarolar. Ao encarar a parturiente, Byr desfaleceu para imensidades. 

 

Viu uma palma sobre as costas do vestido de uma mulher. Leve e envolvente, a mão mariposa do homem flanava sob a escápula esquerda. Em movimentos de sobe e desce, imperceptíveis. Hora décima nona do dia. Noite invernal, dessas que chovem demais e preveem a próxima aparição de Uraci para a manhã seguinte. O homem tocava as costas da mulher como se fora ave rara, presa em linha de pesca à margem do rio. A cena avançava em maré fria, vazão de luz fluorescente da temporada. Onde era esse lugar, Byr já o vira. O que homem e mulher faziam ali é que não entendia. O convite da mão persistia. E então, com o punho direito, a mulher enxugou um choro pequeno, engoliu, lágrima de coração pisado. Súmula final. A mulher tirou o corpo do átimo de segundo. A mulher iridescente, morta na despedida, sem sonho e sem a mão. Byr regressou com o gemido. 

 

Saraiah tentava ficar de cócoras, em prantos. Era ajudar, apoiar pelos ombros. Byr caminhou com a futura mãe, deu muitas e muitas voltas. Apoiou-a no jirau e tornou a caminhar com ela, dobrando quando ela dobrava. Byr foi arengando seus nenos, baixinho, baixinho e Saraiah foi trabalhando. Sá Ana entrou, Isi’po brincava com um pequeno cão. Aprovou a manobra de Byr e tornou a sair para o terreiro. 

 

A tarde escorreu Saraiah nas dores, cada vez com intervalos mais regulares. Byr sabia que era demorado, dolente. O que preocupava é que a menina não estava presente. O corpo sim, a alma havia fugido. Numa das voltas, Byr bateu nas faces da criança, a ver se revigorava o esforço. Só fez amolecer mais a vontade de Saraiah. Byr deitou a mãe no jirau e abriu-lhe as coxas. Estava disposta a alisar, fazer força junto. Nessa hora Sá Ana entrou. Isi’po dormia, tinha tomado banho, comido mingau de farinha d’água. 

 

Sá Ana, parteira empoderada[1] pendurou o balaio na parede perto do fogão, onde as duas podiam vigiar. Sem nada dizer, trouxe aguardente, suspendeu a cabeça da menina mãe e entornou o líquido goela abaixo; sem muito reagir, a parturiente bebeu tudo o que lhe deram. Byr ficou alisando, enquanto Sá Ana pegou uma faca. Esquentou na chama do fogareiro, esperou amornar, lavou com cachaça e veio fazer um corte na entrada da vagina, o suficiente para poder enfiar o braço. Teria de desvirar o feto, encaixar. O movimento foi ágil, certeiro. Saraiah chorou um pouco. Enquanto Byr a segurava pelas axilas, Sá Ana dava safanões na barriga e firmava as coxas da mãe, para que os pés tocassem o chão. Mais algum tempo e o feto coroou. Quando terminou de sair, Saraiah começou a sangrar e não parou. Por mais que Byr soprasse e esfregasse, a criança não reagiu. 

 

Quando o pai voltou para buscar mãe e filho, deu com duas mortalhas e a cozinha muito asseada. Ele agradeceu; colocou os restos de sua gente em um carrinho de pedreiro. Byr indicou o jardim onde a abobé estava. Seria boa companhia para ela. Sá Ana descreveu o lugar. O pai aceitou e, sem chorar, foi lá deixar o fado dos seus dias. Deixou também vergonha, a paternidade e solidão. Depois, seguiu caminhando na margem do rio. Na manhã seguinte, Byr foi visitar a abobé e descobriu os corpos apoiados na árvore. Byr cavou a terra, cobriu Saraiah e o filho com as minhocas. Para esses dois, as flores só brotaram dias depois. Uma roda de corruíras cantou o réquiem.



[1] Saudação a Dona Zenaide Parteira, de Rio Branco-AC - Brasil

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