Vértebra 10
T3, Choca-barrada ou a manifestação
Se-eu-sou-seu-coroné. O cantador deu de milongar no terreiro, sol perto do meio dia. Os dias seguiam calorentos, regados a mosquito.
Iaci crescia a noroeste, desses começos de tarde em que ela é fio no azul. Isi’po já queria levantar, agarrava nas touceiras da passarela, fazia força, caia e ria. O antúrio crescia com ela. Para Isi’po nada de tempo ruim, a não ser quando ficava mais chorosa, perto da décima sétima hora. Byr sabia, a falta do Tamõi. Para si também pesava, o homem apurado que domara sua sensatez. Aqueles pretos brilhosos entre as tábuas da palafita vizinha. No começo, Byr achou que eram bicho-pau. Naquela tarde, resolveu chegar perto e eles fugiram, deixando no ar cheiro de jurubeba.
Se-eu-sou-seu-coroné, se-eu-sou-seu-coroné. O maria-cocá engasgava no seu. Byr se ria e imitava o canto. Andou, as mãos nas cadeiras, alisou a saia de pássaro recém tirada do varal, pegou Isi’po, limpou um pouco a carinha da criança, a boca coalhada de terra. O novo hábito de alternar o vestido de fundo vermelho com pássaro e o azul com flor. Lavava um em um dia, o outro no outro e assim se mantinha vestida. Quando punha os pés na rua, Byr tratava de calçar os chinelos da abobé. Sensação curiosa, as tiras agarrando entre o dedão e o segundo. Acostumou.
As taperas eram perfiladas. A vizinhança ia voltando aos poucos ao cotidiano. Secava suas pobrezas, queimava o que se estragara, limpava o lodo, o mofo. Pendurava roupas. Era um vai vem de latas d’água, buscadas em um cano comum, esfregaços. O cheiro de fogão invadia o ar. Poucas crianças. Velhos, mais. Um deles tinha sorrido sem dentes para Byr, o que tinha a antena parabólica no terreiro. As mulheres tratavam de baixar o olhar, mas não indiferentes ou mesquinhas. Isi’po ia faceira, apoiada na costela da mãe, a lidar com a pequena tartaruga entalhada, arte de Byr.
***
A índia seguia pela travessa até a mata, olhando um e outro lado. Havia rostos em toda paliçada das casas, rostos amistosos. Byr ia trocar palavras com a parteira, todos sabiam, achavam louvável. A senhora sisuda e limpa que atendia a tudo o que soubesse, sarna, benzedura, cobreiro, febre, mal olhado e mais. Sá Ana, se chamava. Cabocla de origem ignorada. Afeiçoara-se de pronto a Isi’po. Punha o bebê ao colo e cantava seus rezos de instinto, girando a criança no ar. Parecia que luzinhas pequeninas dançavam em volta delas, o que sossegava o mar de Byr. A cozinha da parteira era clara, tinha um jirau a um canto, era costume as gestantes virem ali para parir. A tarde chamava fome. Havia espiga cozida, um mexido de pequi e cuscuz de tapioca. Isi’po comeu o cuscuz com gosto no colo de Sá Ana. As conversas eram pequenas, misturados os dialetos. Fácil de entender porque confabulação pura, ensino partilhado. Era dia de Byr contar como fora parir na beira do rio. As pernas que lhe faltaram no parto. Apoiada à grumixameira rente ao rio, seu suporte. Tinha canela-batalha perto. Byr contou de Orun a amarrar os cipós, a alinhar as coxas, de modo que os pés tocaram a terra e os quadris puderam se abrir. Os cordames serviram para os braços agarrarem e também empurrar. Byr contou que machucou um pouco a boca e as gengivas. Sá Ana olhou demorado quando Byr falou do vazio. Orun e o bebê em êxtase com as estrelas e ela presa no escuro, sem saber, sem demandar, sem esperar. Só agradeceu quando deu o peito. Byr pediu ervas para assento. Sá Ana quis saber mais mas a mãe não disse. Barbatimão serviria bem. Havia uma menina para parir dentro de dois ou três dias e Sá Ana perguntou se Byr queria ajudar, no que recebeu largo sorriso. De volta à tapera, Byr deu com os bicho-pau. Dessa vez, eles pertenciam a uma cara, faiscando na janela vizinha. Ficou contente de descobrir outra mulher, com quem talvez pudesse conviver. Cândida sustentou o olhar. Os dentes foram aparecendo tão brancos, tão brancos que esconderam tudo. O vestido de pássaro mediava as mulheres. Byr fez sinal e Cândida veio, entrou na tapera. Esperou. Havia um limoeiro rosa perto da porta dos fundos. Ali se instalara a família do maria-cocá. A panela do forno convidou para jantar na décima sétima hora, quando Isi’po chorava.
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