Vértebra 11


T4 , tiriba-fogo ou a criatividade

 

Aquela galinha no tucupi. Marco de um manancial. Com Isi’po nos braços, Cândida logo aparou os chorinhos. Para o bebê, papa de inhame. Mulher calada por várias luas, Cândida desatou a tagarelar sem pausa. Falou falou riu falou chorou falou falou engrolou, até que o tiriba-fogo da outra vizinha parou de arremedar. 

 

A noite ia alta quando houve silêncio. Talvez tenha sido o licor de jenipapo que bicho-pau trouxera em oferta. Quem sabe lonjuras. Byr quieta, escutava além do rio. Duas ou três palavras foram pescadas naquela borrasca de versos. Byr guardou para si ife e cajá. Talvez tivesse escutado pataxó, mas era cedo. Byr sabia que bicho-pau estava doendo na alma e foi olhar o bebê no balaio. Criança pequena capta as mazelas dos outros e, muitas vezes, transforma em verme, comichão na boca, gatos no pulmão. Isi’po dormia sossegada, não carecia aflição. Byr entendeu que era noite de aprender a lidar com mulher. 


Foi então que Cândida segurou a mão de Xaxim Verdadeiro. Pôs nela os bicho-pau implorativos. Byr pegou a escova com cabo de prata da abobé. O próprio cabelo, a índia tratava nos dedos. Começou, cuidadosa, a desembaraçar o pixaim da mulher, que lhe ofereceu a cabeça como quem oferece um diadema. A carapinha estava limpa. Byr foi assim, desembaraçando e cantando, o canto que Cabreúva Vermelha cantava. Não haveria de apagar o fogo criativo de Cândida, mas lhe dava algum consolo de irmã. Depois, lavava a cabeleira com abacate, quando a mulher retraísse. Lá longe na aldeia havia os banhos no eiru, a tília, compartir rede assim, assim. Ali, na tapera, era apressar o rio. 

 

Logo que terminou, Byr ajudou Cândida a se erguer e a levou ao próprio chão. Nem entrou, deixou a mulher na porta. O soluço era violento, mas Byr deixou, era só. De volta à tapera, Byr teve saudade de uma cachimbada. Mãe-da-Lua deixava no ar o cheiro tonteiro do fumo, apaziguava Yurupari. Byr cantou outro canto agora, de Iaci ir atrás de Ife não para si, mas para a mulher dos bicho-pau. De manhã ia pedir fumo a Sá Ana. Se tivesse cachimbo, melhor. Levava peixe salgado de troca. 

 

Agachada junto ao tamborete, depois de dar jeito nas panelas, Byr disse, de si para si, a história que sabia das mulheres deixadas para trás. Passaram oito luas. Os homens nada de voltar. Na taba, só o pajé preto. No fogo de conselho a decisão, deixar Xaxim Verdadeiro, pois ela não tinhas as pernas, e ir decepar cana nas lavouras. Kanamari. Foi assim que Byr não viu mais as irmãs, as tias, os irmãos menores. O pajé preto os levou por uns quilômetros. Voltou sobre seus passos, era seu ife. A riqueza de Byr, naqueles tempos de puca no juru era cabelo, longo como fieira de corcel. Era pataxohã.

 

A noite ia tingindo os primeiros laranja no céu, os olhos do Urubitinga a cintilar feito as pontas da Ema, que Byr nunca vira nem ia ver. O pássaro tinha o petróleo posto em ela. Byr aprendeu então o que era o consolo de Orun. A manhã veio, cheia de nuvens pretas. A índia respeitava os raios, tratava de os ninar com cantoria lenta e úmida. Quando foi ao terreiro, olhou a parede da tapera vizinha. Os bicho-pau não estavam. Se-eu-sou-seu-coroné, o maria-cocá pipilava, o tiriba-fogo zoava. Tucanuçu chocava seus ovos e marcava tudo, mais com o bico. 

 

Era o dia da menina de doze anos parir. Saraiah. Byr já vira o pai descer a travessa. Levava a criança aterrorizada pela mão. Seco, incivil, Byr já vira esses modos. Saraiah vergava um pouco, a segurar a pequena esfera diante de si enquanto gemia. Tropeçava no próprio passo e o pai a sacudia. Um aperto no peito de Byr. Quis Nheengatu. Era melhor quando a dor a deixava quieta. O balainho tinha duas alças. Byr o pôs às costas. Isi’po ficaria segura, poderia dormir enquanto trabalhavam. Já estava a meio caminho quando Cândida chamou. Parecia grogue, mas ria, o que era um alívio. Byr acenou tímida e seguiu para o rancho de Sá Ana.

 

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