Vértebra 9

 




T2, tucanaçu, ou a simpatia

 

Sempre pacata, desde que se percebera parte da natureza. Quando foi? Quando formiga louca mordeu. Não haveria como determinar as raízes de Byr, a menos que Iara a encostasse no rio e enchesse seu sonho de lembrança. Não carecia. 

 

Quem a chamou Xaxim Verdadeiro? Talvez Orun Tamõi. Quem a encontrou, coberta de muco e sanguessuga, foi Mãe-da-Lua. Respirava ainda, redonda feito abunã, a nádega ferida. Byr tinha todas as partes, chorou, a velha recolheu. Tantos partos abandonados na floresta, mais um. Ao entrar na aldeia, que era já arremedo de nação, Mãe-da-Lua foi recebida pelas mulheres. O embrulho na folha de bananeira Cabreúva Vermelha aceitou, perdera uma cria não fazia mês. Doença de caixeiro devastava a gente nesses tempos. A índia tinha kamby e ficou contente. 

 

Põe silêncio em meu peito, cantou a mãe de novo. As demais irmãs fizeram-lhe coro. Cantaram a noite inteira. Tucanuçu apontou o bico lá do seu tronco, a ver o que era a cantoria. Canto de mulher às vezes tece, às vezes pica. Foi como enxerto de rainha, seu nome punha sentido. Byr tornou-se em orquídea, às vezes envergonhada, pouca iniciativa. 

 

Não sabia brincar nem banhar no rio. Comia pouco. Uma papa de pequi e empinou. Aprendeu a bater pilão e tecer balaio. Mexer os bilros foi depois. Catar piolho, ninar os menores, com quem intuía. Aprendeu a baixar febre com o próprio sopro. A acudir nas primeiras contrações, amparar as crias mortas e enterrar na gameleira da lapa. 

 

Cabreúva Vermelha foi alvejada por espingarda cano duplo quando Byr completou quatro anos. A mãe postiça chegou muito perto da demarcação. Nem viu. Foi na testa. Caiu sentada e ficou, olhos aturdidos, apoiada por um tufo de capim limão. Um seringueiro teve dó e a levou para a clareira. 

 

As mulheres, na lide com nove outras crias, não tinham dificuldade em ver a pequena se fazer. Uma questão de simpatia. Xaxim Verdadeiro seguiu as tias onde pode. Não se sente falta quando se está na oca, quando se planta na mata. Tudo dá. O toque do pilão  fortalece o braço. Foi o que Byr leu no diário da abobé muito tempo depois. Quanto engano, mito, tabu, invenção. E verdade. 

 

Byr conheceu o primeiro homem branco aos sete anos, em noite de lua nova. Ele só alisou e ensinou a alisar. Ninguém deu por Xaxim Verdadeiro. Quando Aracy vibrou o céu, o enfastiado deixou a cunhã voltar, tonteada, a sopesar um livro, estranho artefato que a menina enterrou. O homem nunca mais apareceu, só em reiteradas febres e delírios. Depois foram mais quatro, a dizer língua enrolada, entreter com guloseimas de açúcar, pedrilhos, conchas. Orun, que cuidava das crianças, entendeu. Temeu, acalmou. Mãe-da-Lua, que poderia curar, tinha partido.

 

Na manhã da lavagem dos vestidos, na paliçada de Eirunepé, Byr via o tucanuço a espiar com olho baixo Orun Tamõi. O avô pai embalava Isi’po. Sentado no degrau que dava para o terreiro, o pajé preto recitava as dez leis ao bebê. Repetia, repetia, como se fora o último fôlego. Soprava a boca da menina, o nariz. Isi’po engasgava, chorava e ria, não esqueceria. Byr não vira Aín desde o raiar. Despertara sozinha, achava até que se desorientara, tivera alguma maleita, viera buscar água e perdera os sentidos. 

 

Era difícil para Xaxim Verdadeiro manter lembranças. Seu íntimo era puro mar, navios pirata enterrados no fundo, polvos gigantes a engolir tudo. Do tucanuçu lembrava. A alma, destinada a outros ais, dava pouco uso à Gaia. Pertencia quase nada àquele chão. Agora que sentia as pernas, Byr desejava andar, sem parar, subir algum morro, não para fugir, mas para ver longe. Olhou Orun mais uma vez e só viu a menina, repousada em um balaio recém trançado. Sentiu dor.

 

Orun havia ensinado sobre a puca do vestido. Que as mulheres da comunidade precisavam se cobrir para não perder. Perdiam mais, Byr soube depois. Perdiam na calada da noite, de dia, a qualquer hora, vestidas, lenço na cabeça, calçola. Perdiam com as próprias sandálias, com frigideiras, vassouras, cintas, facões. Eram rosas de um dia. Algumas se encharcavam de cana, outras se empanturravam, ficavam pesadas, outras se cortavam. Outras sopravam fumaças, pediam feitiços. 

 

Havia uma aliança entre Byr e a filha, algo fora de seu raciocínio. Ife. Xaxim Verdadeiro vestiu, pela vida de Isi’po, o vestido de fundo vermelho muito vivo, com desenho de pássaro. Byr não sabia o que era espelho. Ao abrir a tampa do baú, queria guardar o outro vestido limpo, viu parte do cabelo refletido. Tocou o cabo brilhoso com respeito e o posicionou diante do rosto. Seus olhos eram Rio Negro. O nariz, flecha. A boca. Byr sentiu um incômodo nas amigdalas, um ardor. Engoliu três vezes. Fora chuva, terra e um leite adocicado, salgado. Tucanuçu desapareceu no tronco. 

 

Orun falou a Byr de outras urgências. Aprender, rápido, a falar a língua do bairro. Manter a faixa de urucum nos olhos. Fazer um brinco com penas de doze pássaros. Aprender a conviver com as mulheres. Abrir o peito para um filho de outra. Para este filho, cortar os cabelos e fazer outro brinco, uma pena de décimo terceiro pássaro. O menino ia usar. Byr olhava o Tamõi com assombro. Aín perto do fogão, quieto. Escutar, mais do que escutava. Ficar atenta, vigiar, invocar quando estivesse em perigo. A Mãe-do-Raio. 

 

Orun pôs a mão na cabeça de Byr, estendeu o braço e pegou Isi’po. Ver, através do corte, do sangue, da lágrima, das cãs. Do veneno. O pajé avisou que Byr emprenhava algumas vezes, mas as crias escorriam antes de vingar. Que era bom que os homens não deitassem em rede ou jirau. Que fossem fugazes e deixassem alimento. Que não erguessem a mão. A Xaxim Verdadeiro cabia dar consolo e só. Que a tapera queimaria se fosse diferente disso. Que Isi’po iria com uma caravana limpa, altruísta. Byr veria a menina crescer antes. Então subiria o seu morro, finalmente liberta. A arenga do Tamõi afluía ao mar de Xaxim Verdadeiro, como ondas a quebrar, violentas, em encosta de penhasco. 

 

Antes de partir, Aín deixara duas pequenas pedras rosa, opacas. Seco, incivil, desviava o olhar. Disse que as pedras eram alimento farto para quinhentas luas ou muito mais. Deixou o nome de um homem anotado no caderno da abobé. Tal homem faria cada pedra virar moedas, muitas. Jamais tocaria em Byr ou Isi’po, Aín assegurou. Seria protetor. 

 

Byr tinha dois caminhos, e isso Orun não ensinara, ela sabia. Na noite em que ficou sozinha com Isi’po pela primeira vez, a mãe concentrou-se no conteúdo do baú da abobé enquanto o bebê dormia. Cantarolou pela alma da goitacás, que estivesse feliz em seu jardim. Kulina não lhe cabia. 

 

O Urubitinga fizera poleiro perto da janela, no abacateiro em flor. O pássaro encarou Byr quando ela quis olhar o espelho. Disse à noite não. A índia arrepiou e deixou o espelho virado. Pegou o embrulho de renda. Urubitinga disse ainda não. Xaxim Verdadeiro, que vibrava docilidade e pachorra, tomou da faca pendurada junto à vara de pesca, cortou um pedaço da renda e embrulhou os pedrilhos. Sabia que a ventura deles era outra. Foi ao terreiro. Pôs a renda com as pedras em uma lata de sardinha meio aberta e enterrou. Depois plantaria ali um antúrio. A candeia permaneceria sempre acesa, o suficiente. Em dias de lua plena, descansaria. De volta ao jirau, Byr não conseguia dormir. Foi até a porta. Estava lá o Tucanuçu, a cuidar do ninho no tronco do coqueiro. À voz miúda, para ser escutada pelos grilos, Byr murmurou nuvem, o que conta em tecido cinzento Água Douro, Água Ródano. Voz de barcos, viajor e vento. Igarapé, fio de Sorimã. Segue o tempo, barra e unguento. Lua, minguado, algum amor. Segue a linfa pura a escorrer dos olhos. Javari, Purus. Segue lembrança Takuara em flor. Hnguê Hnguê Hngureê Hungô hungô hungureê. Nuvem, canta um verso reparador.

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Os olhos do mar de Byr se abriram. Era um memorial de riqueza sem par, herança de alguma mãe. Coisas também dos brancos que conheceu. Byr reparou nas traças, cupins, seres carpidores, pequenas civilizações a serviço de uma lei. Tijuca. Saudade da lealdade de Curuatinga. Quem lhe contaria isso de lei , mais tarde, seria o livro da abobé, aberto no platô.

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