Vértebra 7
C7 - Proeminente, ou arandu ou sabedoria
Todo cuidado é pouco quando sopram os ventos. Eles podem ser adversos. A esquadra e todos os agregados visíveis e invisíveis seguiam viagem, margeando o Juruá em direção ao Solimões. Carauari era outro posto ao qual Aín deveria atender. Missão pessoal e solitária até então. O frei entrava nos lugares, impunha as mãos e partia, sem trocar palavra. Parava em algum armazém a procura de alimento. Em geral, algo lhe davam.
Orun Tamõi sensibilizou-se com o terreno florido que vira nas cercanias de Eirunepé. Entendera o intuito, sentira a presença dos legendários, a Mãe-do-Raio entre eles. Recordou Ododo. Por que não o visitava? Sequer em sonho? Orun Tamõi queria ver a mão de Aín trabalhar. O frei fora atencioso com Xaxim Verdadeiro. Tocara de leve seu joelho direito. Só este medicamento fez ihaninhê se erguer e determinar a nova fase da marcha. Orun velho respeitava o frei pela deferência com sua gente. Byr de pé, Isi’po faceirice pura, cunhã cheinha e hígida.
Velho e moço nem tão moço sentaram-se um pouco adiante do leito florido da abobé, enquanto mãe e filha se entretinham com arrulhos. Olharam-se demorado os dois curandeiros, cheios de inquirição. O primeiro a emitir som foi Aín, a formar frases curtas em iorubá arcaico. Foi assim que entabularam prosa de conciliação.
Xaxim Verdadeiro entendia esses momentos. Na aldeia, as estratégias de territorialidade eram decididas em circulo cerrado, do qual só homens participavam. Mesmo sendo ali dois, e tão distintos entre si, a mãe sabia que o destino estava em construção. Esperou. Isi’po dormiu. Orun Tamõi fez sinal para Byr, que sustentou o bebê e se aproximou, tudo mui lentamente. Os homens se ergueram e a circundaram. Aín apontou Eirunepé. A água do rio tinha baixado. Ainda havia perigo de doença. Porém, o jirau da abobé era amparo seguro para mãe e filha. As coisas da tapera serviriam de marco inicial para a lide. Os quatro seguiram para a palafita vazia.
Na porta, um botijão de gás. Aín ergueu o cantil cheio e o levou a um canto, onde ficava o fogão. Tudo estava como ele havia deixado ao sair com a abobé. Acima do fogão duas panelas, uma frigideira, uma chaleira. Um bule, duas canecas de latão, dois pratos de cerâmica, uma bilha seca, uma colher bojuda e duas colheres menores sobre um tamborete. Um facão. Tudo asseado. Em prateleira mais alta, três latas de tamanhos diferentes e feixes de condimento conhecidos de Byr. Os quatro passaram a noite a desvendar estes poucos pertences deixados pela falecida, reconheceram seus usos. Só repousaram quando o casebre estava mais seco e cheirava a canela em rama e erva de espantar bicho. O chão de tábua já não escorregava. Havia duas redes. O baú de mogno da abobé, apoiado em duas pedras, escapara a umidade. Dentro, dois vestidos de chita, um deles mais novo. Alguns panos e coisas de coser. Um vidro grande de água de cheiro. Um espelho, uma escova de cabelo com cabo de prata. Um par de chinelos. Dois livros, um deles enrolado em uma renda branca, um lápis e um diário, escrito até a metade. Nas latas sobre o fogão, fubá. Um pouco de sal. Uma fieira de alho e cebola branca. Mani com casca. Uma garrafa de tucupi. Maniva moída. Uma lata de banha.
Aín foi buscar água. Na frigideira, Byr juntou fubá com um pouco de tucupi e fez um pirão que matou a fome de todos. O fogão, ela já sabia acender e apagar, Aín lhe mostrou. Dentro do forno, uma panela de barro. Atrás de um postigo que separava o jirau, uma vara de pesca apoiada à parede, uma rede de apanhar peixe, e mais um facão. Uma bacia grande. Havia também um lampião e um pote de querosene a meio. Alguns acendedores.
Para a situação, tudo chamava riqueza. No fundo da tapera, havia um terreirinho onde já vicejara horta. Em curto espaço de tempo, todos podiam se sentir acolhidos, como se o abrigo sussurrasse. Dormiram um pouco. Aín se aninhou na palha perto do fogão.
Logo que Uraci os chamou, os barulhos da travessa começaram. Passava alguma gente rente à janela, a ver quem chegara na morada da abobé. Aín contou, em português com sotaque, que eram parentes, que vieram visitar e puderam dar enterro digno à anciã. Os eirunepenses reforçavam a história, com testemunho de que a abobé estivera só por vários meses, sem familiar para auxílio. Muitos choraram e lamentaram a perda. A enchente levara de todos um pouco. O frei aproveitou para contar que Byr e a menina ficariam no casebre por um tempo, até que ele voltasse de viagem. O povo, mexido com as tragédias, e como tudo ali fosse mais pobre do que se conhecia, não pôs defeito às narrativas, sorriu para a nova moradora encolhida com a criança na rede e seguiu com sua vida, não sem antes se dispor para as precisões delas, em especial após saber que Byr não falava o português. Por sorte, havia uma parteira no final da travessa, que sabia tupi-guarani, para os primeiros contatos. Eram, dessa forma, os primeiros arranjos da nova puca de Xaxim Verdadeiro. A diferença entre a puca da árvore e essa é que a índia poderia sair e entrar com liberdade controlada.
Perto da décima sexta hora, Iaci olhava minguada para a região. Quando ela sorrisse daquele jeito outra vez, Aín estaria de volta, foi o que disse. Para surpresa de Byr, Orun Tamõi seguiria com o frei. Era o rito da orelha furada, disse o preto velho, pelo qual toda mãe passa. O choro veio, mesmo, quando o manto da noite cobriu o rio, brilhante e zumbidor. Isi’po chamou por Xaxim Verdadeiro e pôs fim a qualquer desvio da linfa pura.
O bebê, para vingar, dependia de uma mãe forte e destemida.
E assim foi. Interessante: as flores amarelas vieram, lindas, brotadas de um pote na beira da janela. Duraram o tempo delas. Nesse ínterim, um besouro negro, do tamanho da unha do indicador, foi comendo as pétalas de um dos botões, devagar. E o bicho foi ficando amarelo. Na lua nova, a flor tinha, inteira, sido devorada. Processo natural, Byr não interferiu. O pé da planta enfraqueceu. Byr tinha certeza de que não por conta do besouro, mas por falta de nutrientes, carecida de terra, água. Com o ir e vir da índia, deve ter trazido o bichinho no vestido que adotara seu. Na cidade não se andava nu, a não ser as crianças. Foi uma benção aquela estampa discreta para cobrir o corpo. Em um movimento para alcançar a colher, o besouro, meio preto meio amarelo, caiu no canto do fogão. Byr pensou que ele estava morto. Descobriu um rastro do bicho na saia, talvez ferimento... não quis mexer, limpar. O besouro zumbiu, girou, ainda no chão, patas para o ar... acalmou-se. Byr quis apanhá-lo com a mão. Então se lembrou do caderno no baú. Retirou uma folha com cuidado e deixou que o besouro se agarrasse nela. Levou-o até o vaso, já feita a poda. O inseto subiu no polegar de Byr e alçou voo, por cima da tapera. Ele cheirava a flor.
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