Hospital Casaredo 97
Libreto
O ir e vir de Madame, livre pelo hospital, lhe permitia conhecer muitas coisas, das mais simples às controversas. Das simples, testemunhou a chegada do senhor Giulionni em uma manhã de domingo. Ele vinha morar, em definitivo, naquele lugar de doidos. O advogado achou por bem vir asilar-se, as pessoas eram conhecidas e, de certa forma, compreensivas.
Sua carreira de defensor completava, no dia em que a mala e o aquário o antecederam no portão três, quarenta e seis anos. Tudo depunha a favor de um homem de bem, não tinha parentes, somente uma cobra-d’água de colar, seu bicho de afeição. A controvérsia. Entrado nos sessenta e tantos anos, era bem apessoado, afável. Os bens que juntou com trabalho duro seriam de grande valia ao hospital. O sábio Wong Bohai argumentou longamente com o homem, ponderou sobre as óperas daquela casa. A chance de morrer em território acolhedor, e não sozinho, alcoolizado em um apart hotel, prevaleceu. Até onde tivesse juízo, Giulionni cuidaria dos pleitos jurídicos ali albergados. Tal acerto era garantia de saúde e interessava ambas as partes. Quem apreciou o novo arranjo foi a silenciosa Maria, embora viesse junto, em ampla caixa de vidro, a Xiao Qing. Giulionni almejava um leito de dormitório, estaria muito bom. A enfermeira chefe, discretíssima, ofereceu ao sábio Wong Bohai a alternativa do quarto vago no sobrado onde residia.
Um pouco estranhados de início, a mão estendida de Maria logo florou. Ainda não se evidenciara um enlace, demorou justos seis meses para então cintilar, feito sol de outono. Todos pensaram em conjugalidade. Justo, Madame entendia bem as solicitações do pertencimento. O que se viu nascer entre Maria e Giulionni foi o que se pode chamar serená. Uma confraria equilibrada, inteligente, bem humorada, que devolveu-lhes vitalidade. Poucos encontros eram assim, tão enfáticos.
O mais interessante é que Madame, na companhia dos novos amigos, remoçava uns dias e majorava suas chances de cozinhar, também o trabalho com os textos ganhou fôlego. Ela ia ao sobrado quase todo começo de noite. Aproveitava e parava diante da janela da enfermeira Catarina. Podia rever seu grotesco sol, que tingia um pedaço da parede, logo acima da mesa de refeições. Arte um tanto pretenciosa, porém com conteúdo. Madame sorria e seguia seu caminho, caderno de espiral branca e lápis no bolso da camisola. Passear pelo recanto dos profissionais, em noites de lua, era pacificador e ajudava a ordenar os pensamentos que ainda faziam sentido. Como Xiao Qing foi aclimatada ao mirante de leitura, para o deleite do doutor Wong Lam, era raro vê-la, a não ser quando o médico a levava à praia.
O senhor Jair mantinha os canteiros sempre coloridos, perfumosos. Nos jardins da capela, Xiao Qing também passava algum tempo, o jardineiro a ia buscar pessoalmente para um passeio vez ou outra. A cobra se mantinha concentrada nas cantilenas da harmônica que ele tocava. Só ali o réptil exalava seu odor forte, um anúncio desiludido de sua presença, ou talvez felicidade, pelo presente que a circundava. Havia bancos e mesas, lugar perfeito para escrever, ler, tricotar, tocar o pipa ou o clarinete e desenhar. O senhor J.G. o compartilhava com Madame em algumas ocasiões. O artista demorou alguns dias para representar o belo encontro entre Xiao Qing e Bai Suzhen[1]. Uma semana depois Jair, de fato, desentocou uma cobra albina, para encanto do veterinário, que passou a estudar e controlar o ecossistema do perímetro. As cobras ganharam status de vedete na casa, com a oposição veemente dos cães. Fieiras de luzes foram estendidas pelo espaço, o que conferiu à capela outros encontros, à noite, algum argumento operístico.
Durante o dia, havia bastantes movimentos externos no hospital. O senhor Ozório, aquele que chegou com a cachorrinha Filó, após longo tratamento contra um câncer, deu de retribuir os cuidados com vontade de viver. Fazia as vezes de chefe da limpeza, ainda mais eficiente que a ex-esposa do enfermeiro Javier. O que deixava Ozório contente era a lavagem das janelas. Metodicamente, conforme o girar do sol, a casa recebia eficiente esponja e esfregão. O homem não podia, sozinho, dar conta de todos os vidros. Era comum vê-lo sobre os andaimes, projetados pelo enfermeiro Manoel, junto de outros trabalhadores. Quando o velhinho se aventurava pelos pisos superiores, abria a voz de fadista e cantava. Dália, uma das faxineiras, chorava sempre. Foi um desses dias de fado que permitiu a Madame seguir com a história do pirata José Gaetano, ela sentada a uma mesa do jardim, diante do sobrado de Maria. Já se avizinhava o final da trama.
Portugal não era tão mais velho que o Brasil, afinal. Três séculos e uns poucos anos, era o que contava a pátria lusitana. Desse irmão mais novo, Terra Brasilis, foi feito o que se quis, entre improbidades e agradinhos. Persiste, entre os dois países, fraternidade familial, apesar de todo o sangue derramado. Ao pensar nisso, aquietado sob uma manta no convés, José Gaetano mirou a baia de Santos e lhe veio uma história, de um só alento. Os povos do Brasil, que moravam lá quando a terra se chamava floresta, ouviram as profecias de Andira, o senhor dos agouros tristes. As árvores Ipê, Aratingaúba e Aroeira falaram com eles e disseram que as mudanças viriam por mar, nas primeiras ondas apenunga da manhã aracê. A estrela da manhã, Arasy, brilhava no céu. Tais profecias assustavam, mas eram inevitáveis. Os povos do Brasil riram e continuaram a dar nome para as coisas: sol aram, lua iaé, árvore aimará, rio U, peixe abacataia, flor aguapé, fruto açaí, pássaro acará, pessoa boa abaetê e casca de concha apepûera, vivendo um dia arebo de cada vez. E os povos do Brasil tocaram sopros ica, boré e herá. Amanacy, a mãe da chuva, lavava a terra e enchia apenunga de espuma. Apoena, aquele que enxerga longe, espiava o horizonte. E o tempo passando. A coruja aondê piava seu tutururu e mantinha a todos atentos. O dia chegou e a grande canoa foi exaltada. De longe, o mar dizia “terra à vista, terra à vista”. Os povos do Brasil aceitaram, por razões lá deles, colares, bugigangas e espelhos quando as canoas grandes aportaram. Espelho foi o artefato mais temido, pois comia almas. Mesmo assim, todos cantaram cê, evocações e loas diante de duas árvores tombadas e cruzadas com forte cordame. Os povos do Brasil ouviram as arengas dos loyolistas. Acharam lindo, musical. Um dia, o mar levou os escritos feitos na areia e a floresta chamou os povos do Brasil e os acolheu. Eles jogaram os espelhos no mar, abriram um bom caminho apecatu, que os guiou para o Araguari, onde cantavam os papagaios, cheios de lucidez akangatu. Algum dia amuara, a viagem recomeçaria. Os povos do Brasil só queriam bem estar angatu.O riso fácil deles os levava na conta de angá, donos de certa ternura. O prognóstico anonga tinha som de coisa oca apepu.O tempo furioso arani apontava para o Cruzeiro do Sul, Arapari. Cada dia arebo que passava era dia de moldar pedra de beiço batoque.
Madame estancou diante da página, arrebatada. Não fora ela a escrever aquele mimo, mas fora. Alguém pode ter soprado em seus ouvidos, talvez a Xiao Qing, enrolada perto da cadeira, em especial as palavras que jamais lera ou escutara. Discreto, oculto pelas folhagens, o senhor da Nossa Senhora, movido pela leitura em voz alta, chorou. Atreveu-se a pedir que a dama lesse novamente e ficou a ver navios. Madame já fora olhar o sol vermelho, não sairia tão cedo de frente da janela. A saga de José Gaetano prosseguiria ainda por um tempo, para consolo do enfermeiro Gaspare.
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