Hospital Casaredo 96

 




litoral paulista



Cheganças & Despedidas


 

Há horas em que o nada a fazer é mais adequado que enlouquecer. Já meditamos sobre isso, pipila o coração de José. Já cantamos, a calma das alumiações. Aos pouquinhos, alguém escuta a nossa ladainha e canta conosco, Querido navegador. Ajuda-nos a criar atóis. Baias de ternura. Ancoras de esperança. Areais de paciência. Tarrafas de silêncio alentador. Cuida de nós. Saibamos compreender as demandas da vida. Permitas o fortalecimento de nossa seiva e fibra. Para que os derradeiros dias nossos venham, em acordo com as cristas. Tiramos do mar, Querido navegador. Coloquemos de volta. Protege-nos igualmente dos monstros marinhos que habitam em nós. Nós, que  somos plâncton. Olha por nós, Gentil Tritão. Olha por nós.


 

José Gaetano passou a noite aboletado na gávea. A dama preta do doce de marmelo o foi buscar, chamou, não adiantou.  O céu era tapete. José, em sua sabedoria de teimoso, cismou a proteção divina. Cantou às caravanas intuídas no tapete estrelado. Pediu, agradeceu, louvou. Noite de nana para os habitantes de Santos, Brasil. A febre das crianças cedeu. Também as tosses e os apertos no peito. Dois bebês chegaram bem ao mundo. Um velhinho morreu em paz. A Rojo, outra flor, que todos tomavam por endemoninhada, naquela noite adormeceu a sorrir. Havia muita gente com fome e nessa noite o alimento veio através do coração. O padre, que a tudo brandia a cruz, naquela noite rezou o terço, pacificado. Recebeu a visita de Santa Rita. Os pássaros noturnos se aquietaram. A princesa de Aioca veio e debruçou-se na proa, a pentear os longos cabelos, perfumados a cana. José amava, era notório, notável. Poseidon levantou algumas cristas muito de leve, para ritmar o responsório. O vento enfunou as velas, Julieta, a âncora, fincou pé. Lá na coordenada tal, latitude tal longitude tal, o capitão-mor Alois Donis sentiu uma brisa mais quente ao pescoço.


 

Espírito esclarecido e benevolente, mensageiro do Universo, que tens por missão assistir os homens e conduzi-los pelo bom caminho. Ensina a captar, de forma criativa, as vibrações de cura para mazelas e deserções. Que eu possa contribuir para a evolução, minha e dos demais. Vibro, estou luz. Ecoo, canto. Fica comigo, Desdêmona.


 

O sol nasceu na baía de Santos, Brasil. José Gaetano voltou à estalagem, deitou-se na rede, em paz. Às onze horas, receberia os primeiros candidatos a tripulantes para nova viagem. Dormiu profundamente. Despertou na mesma posição em que se aconchegara, perna esquerda e mãos assustadoramente dormentes. Fez exercícios e logo pode suster-se. Lavou-se e vestiu uma camisa limpa, que encomendara à dama preta do doce de marmelo. Vinte homens se apresentaram, todos grumetes. José viu neles réplica mais ou menos idêntica à tripulação anterior. Pediu que oito rapazes ficassem e os demais voltaram ao porto, onde postos em outras embarcações os achariam. Maden falou aos novos marujos, avaliou suas habilidades. José confiou. O mestre saberia como cumprir suas funções. O comandante deixou a Sor e caminhou durante horas. Tinha a pele curtida e protegida pela nova camisa. Procurou abrigo em uma faixa de mata atlântica. O contato das árvores, o porte daquele entorno, provocaram no bucaneiro emoções contraditórias, êxtase e pânico, especialmente quando os raios de sol não conseguiam penetrar as copas das árvores. Sem esmorecer, José seguiu mata adentro, facão em punho, mão direita atenta. Felizmente, não careceu manejar a arma, limitando-se a livrar alguns galhos mais intrincados. Procurou poupar lagartos, louva-a-deus, besouros e outros seres que não sabia identificar. Encontrou vanessas de azul brilhante, efeito semelhante ao dos peixes preto e prateado que vira no fundo do mar. Havia também rosa-de-luto afixadas aos troncos. O cheiro fétido escapava das lagartas, defensivo. Havia vários pássaros ricamente trajados e com cantos percussivo-melódicos estimulantes. José passou bom tempo improvisando com eles. Gostaria de ser entomólogo. Ornitólogo. Botânico também lhe agradaria. Se fosse caridoso, padre, também seria bem vindo. Um filósofo, que tivesse lido Voltaire e Spinoza. Sábio, que entendesse de conversar com espíritos. Preceptor, que falasse francês e italiano. Alquimista. Físico. Astrônomo. Clarividente. Mergulhador. Um grupo inteiro de músicos. Espadachim. Tipógrafo.  Operador de coesor elétrico. Melhor, alguém que dominasse o Código Morse. Saltimbanco que apresentasse alguma bufonaria. Um bom declamador. Um enfermeiro. Madame sorriu daquela bobagem toda que anotara, acariciou a espiral branca de seu caderno, tocou a ponta do lápis nos lábios. Bufão o homem era, só não se dava conta disso.


O comandante tinha pouca familiaridade com plantas e então optou por não provar fruto algum que encontrou, nem mesmo mangas espada que pareciam saborosas. Queria ter um desenhista na expedição. Maden. Sentar no meio da floresta não atraiu José Gaetano, poderia topar com algum aracnídeo, anfíbio ou réptil e preferiria não tirar a vida de nada. Voltou para a baia, apoiou-se a um butiazeiro e ali olhou o mar. Escutou o mar, que muitas vezes soava como um trio de trompas e tambor. As faluas não costumavam navegar na costa brasileira. Na borda da mata havia araras, seu pássaro preferido. José disse o nome de Donis várias vezes, a ver se encontrava a arara azul que o visitara dias atrás. No ombro da floresta, uns cinco minutos mais tarde, ele a distinguiu. A ave repetia o nome e assoviava em seguida, grácil pássaro bem humorado. Alois, fiuuu, Alois... fiuuu, fiuuu. José Gaetano brincou com a sonoridade mais um pouco e tratou de voltar à cidade, a ver se encontrava uma casa bem localizada, em platô, onde pudesse ficar melhor instalado por mais alguns dias. Não demorou muito e encontrou uma, toda branca, janela e porta frontal, as cortinas de renda a esvoaçar. Dava para ver a janela dos fundos, aberta para um quintal arborizado. Na frente, havia rosas do mato e outras flores silvestres, um agradável jardim. O comandante bateu palmas e uma morena forte, sorridente, veio depressa. Recebeu-o afogueada e explicou logo o forno, pode entrar, estou a cosê o pão, tem café que acabei de passá, se achegue que já lhe sirvo uma boa fatia com queijo. José sentiu-se melhor. Os dias fluíram leves, desde este momento. Mesmo sossegado, o comandante andou estufado com o tanto de pão e um livro que emprestou, que o fez perder as contas do tempo que faltava para a chegada da lua nova. A leitura tratava do mito de Orfeu. Tentou trocar impressões sobre a história com Cesária, a dona da casa, com Maden, até com a dama preta do doce de marmelo, que ficara magoada pela partida dos pensionistas, sem entender o porquê daquela movimentação, há poucos dias da viagem. 


Uma peça musical, entoada pelo protagonista de Orfeu deixou José fora de órbita. Uma vez, tivera nas mãos a obro composta por Monteverdi. O texto em tela, vieni ianto Hiemeneo, seconda i nolìri vori, e i noftri canti. Scorgi i beati amanti. L'un el'altro cclelìe Semideo. Stringi il nodo fatal[1] lembrava um chamamento de amor. Foi preciso que Maden provocasse José, para traze-lo de volta à realidade. Para piorar o estado aerado do comandante veio uma missiva, um convite. Pônsio de Luzera, antigo parceiro musical,  dos tempos em que José, ainda jovem, fez a primeira aparição em sarau, chamava o comandante para tocar. Os dois tinham entendimento há mais de vinte anos, através das tetúlias em solo português, espanhol e brasileiro. Também tocaram na Sicília, Veneza e Calicute. O envelope, que veio pela Armada Santista, datava de dois meses atrás. Se partissem com a Sor em cinco dias, quem sabe encontrassem a trupe de Luzera ainda em Lisboa.



[1] Alusão ao Orfeu, de Giuseppe Monteverdi

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