Hospital Casaredo 95
Arroz com especiarias ou a inveja
Havia uma página solta no caderno de espiral branca onde se lia, em nota de rodapé, A inveja a Fernão de Magalhães. As mãos de Madame tremiam mais que o usual naquela tarde da conquista a Ceuta. O enfermeiro Manoel tomou-as, como se somente com elas fosse dançar e foi o que fez. Palma contra palma, erguia e baixava os dedos com delicadeza tal, que chorar foi inevitável. Madame, presa aos túneis da memória, acompanhou o gesto, olhos nos olhos do rapaz. Quanto mais haveria para sentir?
A plateia, reunida no ateliê, ouvia histórias contadas pela doutora Dung Hanh de improviso. Era uma vez um marinheiro português que queria galgar as quatro montanhas. No caminho para o mar das Molucas, depois de dias e dias desesperados, pisou terra firme. Caminhou por muito tempo pela ilha, sem encontrar gente alguma. Um pequeno livro, esquecido sobre uma pedra, ao pé do Moti, foi o que viu. Entre faminto e enamorado, o marinheiro abriu a folha de rosto, toda branca.
Ainda não estamos prontos para muitas coisas, não é Manoel? O enfermeiro sossegou a festinha dos dedos e olhou demorado aqueles olhos de baço brilho. Não, não estamos Mamã. A vida nos sacode a todos. O que há dentro, para derramar? Talvez água doce, querida, já é alguma coisa. O caderno de espiral branca, que voltara para o bolso da camisola, foi novamente aberto. Madame leu a alusão de rodapé e um vislumbre a tocou. Uma tarde, que antecedia o aniversário da conquista a Ceuta. Alois e José, na sala da Roseira, a cantar rapsódias galegas, um a envergar uma casaca púrpura, outro, a verde oliva. Um olhar ciclópico, o outro, argoniano. Na parede, uma pintura de Prometeu a oferecer o fogo. A voz desiludida de José causava alvoroço. Poderia ser, ele, o próprio Zeus, só não sabia disso. A voz de Alois envergava as penas de Hermes, talvez caísse melhor se desempenhasse o papel de Io. A moça, a sonhar no balcão, tilintava distraída o sino de entrada, afinado aos instrumentos. Então ela escreveu inveja, no livro de registo dos hóspedes, ao lado do nome Fernão, não sabia que o fazia. A camareira, que trazia naquele instante uma jarra com bebida de frutas, espiou por sobre o ombro da irmã. Passou também outra mulher, amuada, à maneira de Pandora, uma pequena arca entre os braços. Afoito e sem mais avisos, como que picado, Alois Donis estendeu uma moeda a ela, sumiu com o saltério como que por encanto e partiu, no ar, sem dar adeus. O olhar de José para a porta causaria o terremoto de Lisboa. O Tejo agitou-se. Sem nada que pudesse fazer, o bucaneiro tratou de aproximar-se do balcão. Com voz tímida, pediu a Rosália um quarto para uma noite e entreviu o Fernão de Magalhães firmado no livro de registos. A moça, com jeito de mofa, achou por bem abrir o aposento do mirante para ele, ao invés de oferecer seus seios e lavação para as costas. Arroz de açafrão e noz moscada, prato caríssimo, foi dado de graça a ele por Antária. Ao abrir a caixa para a contagem do lucro diário, mal sabia Deolinda do que estava por vir.
O menino Júlio olhava o mar da janela do corredor, o Hospital Casaredo tinha asas nos pés. Deu com Madame atracada entre as portas dos dormitórios e entendeu, a bateria descarregara. A velhinha segurava o caderno de espiral branca nas mãos muito trêmulas. O rapazito conectou a cadeira de rodas a uma tomada, as baterias carregavam em questão de minutos. Madame recebeu, da filha bruta, Matilde, uma mesinha, um copo de suco e canudo, bem como um pote com mingau de trigo sarraceno, a nova alegria da senhora. Júlio sentou-se no chão, ao lado, a mordiscar uma maçã que Matilde tirou do bolso. A enfermeira seguiu com seus atendimentos. Nada havia a dizer. Ambos tinham uma boa visão do mar, foi o que dividiram. Esmeralda passou afoita, a empurrar com ares de adulta o carrinho de Pérola, ao lado de Marieta. É bom que todos se lembrem quem elas são, pois Madame esqueceu.
As três mulheres, de idades tão distintas, tinham um envolvimento de natureza pura, simples, intensa. Sorriram para Madame, para Júlio e seguiram adiante. Saíram da casa e andaram um bom tanto em silêncio. Mais uns passos e Esmeralda começou, sutis puxões na saia de Marieta. Fez um meneio leve em direção a outra moça, sentada diante da Capela Rosália. A grávida parecia que sufocaria, de tanto chorar. Marieta quis se aproximar, socorrer, porém Esmeralda a impediu carinhosamente. Seguiram caminho, a madrinha de Pérola a olhar para trás, intrigada.
Ao chegarem ao sobrado, assim que puseram o bebê em seu bercinho e Esmeralda foi buscar Júlio, a pedido do pai, Marieta abordou Javier, era hora de descanso dele. Sem outra intenção que saber sobre a moça chorosa da capela, se ele a conhecia, se captava o que se passava com ela, ousou interromper a sesta do enfermeiro. Javier contou, da forma mais leve que pode. Muitas mulheres atendidas na casa, em função das mudanças orgânicas e tantos desesperos, abandono do parceiro, dos familiares, por insegurança, desejo de autoafirmação, choravam e vinham ao hospital solicitar o aborto. Em Portugal, era permitido desfazer-se da vida dessa forma, até o quinto mês de gravidez. O Casaredo se permitia o direito de não realizar o procedimento, a menos que fosse para salvar a vida da mãe ou do bebê. A grávida em questão enfrentava um impasse. Não tinha coragem de procurar outro hospital, não aceitava a criança que crescia dentro dela. O doutor Wong Lam intercedia no caso há dias, trabalhava também para prevenir um suicídio. A futura mãe oferecia toda resistência possível. Só aceitava a presença do doutor, no mais era chorar. O quadro não mudara até então, a moça não ia embora, passava parte do dia a desidratar-se naquele banco. Javier fez silêncio, não queria julgar, tampouco irar-se. Marieta percebeu o mal-estar, despediu-se e saiu, respeitosa. Discreta, passou diante da capela novamente. Wong Lam atendia a moça, ela a se debater violentamente, correndo o risco de ferir-se. Paralisada diante da circunstância, Marieta foi amparada e afastada do local por Alev, o homem invisível. O enfermeiro argumentou em tom seguro, sugeriu que ela não entrasse naquele campo magnético. Assegurou, o doutor era competente e saberia como levar o tratamento a bom termo. Evitar um suicídio era bastante difícil, por isso o médico agia com presteza. Alev levou Marieta a perceber algumas pessoas, distribuídas em pontos estratégicos, caso fosse necessário contenção. Dessa forma, a fotógrafa do Dores&Risadas conseguiu voltar às suas tarefas na cidade sem perturbar-se. Despediu-se de Alev, dizendo que voltaria dali a dois dias.
Júlio deixou a senhora, o movimento restituído à cadeira, fio elétrico guardado. Madame quis ir ao ateliê, após ter-se alimentado do mingau. Tomou ciência de que os potes vazios estavam no bolso da camisola e os levou ao refeitório. Ao deparar-se, no caminho, com a cena entre a grávida e o doutor Wong Lam, achou de não se envolver com aquela história. A moça chorava, mais alto que o navio a apitar ocasionalmente na praia.
Já no ateliê, Madame ousou entrar no quiosque das artes visuais, uma cor chamou-lhe a atenção. Notou uma tigela sobre o batente, ao lado da tela branca, apoiada no cavalete. Talvez fosse material da narcótica Adele, para futuro retrato. Madame não sentiu nada, ou talvez fosse a automática vontade de jogar coisas. Mergulhou a mão esquerda na tigela, o suficiente para a esconder. Arrepiou-se, a tinta era cor de sangue alcalino terroso. A senhora levou os dedos aos lábios, sem que pingasse gota alguma. Somente suas narinas se tingiram, dando-lhe uma aparência apatetada que provocaria muitas gargalhadas naquela tarde. Madame devolveu a mão ao caldo. Sentiu que havia algo mergulhado no líquido. Apalpou e soube que eram pedaços de gaze. O gesto foi maquinal, produzido em sentido horário. A mão girou rápido sobre a tela branca. Madame ficou a olhar em demorado para a metade de uma bola de fogo que nascia. Pedaços de gaze criaram textura, sem escorrer, sem rasuras. A mão repetiu o gesto vária vez, sobrepondo vermelhos que iam tonalizando naturalmente. Ocupou-se do gesto calmo, curvilíneo, por pelo menos vinte minutos. Nenhuma gota fora do lugar, a não ser na mão e ponta do nariz.
Quando a enfermeira Catarina chegou para recolher a senhora ao leito, já eram horas, parou diante da peça finalizada. Madame, em respeitoso silêncio. Um abstrato, um sol, um redemoinho de dor, um planeta fugidio, a íris cansada de pranto. Três planos muito bem definidos, o branco da tela quase sumido, quase sumido. A esfera, plena de relevos criados pela gaze. Algo como guirlandas à volta de um fundo avermelhado, tênue, oferecia ao observador uma terceira dimensão para ver, distante, penetrável. Uma estrela muito quente. A enfermeira tomou o pulso de Madame, por um segundo duvidou se cochilava. Limpou-lhe a mão com cuidado. Deixou o nariz como estava, para atiçar o humor de Matilde. Antes de levar a velhinha adormecida para o dormitório, desenhou o nome Mamã, em letra miúda, com um leve toque de preto, no canto da tela. Mais tarde, pediria o trabalho à doutora Dung Hanh, caso Matilde aceitasse pendurar a tela em algum lugar do sobrado que as duas dividiam. A experiência foi fotografada por Marieta, dias depois, com o nome de A inveja.
Comentários
Postar um comentário