Hospital Casaredo 94
E assim foram passando os dias invernais do litoral português, logo após o Ano bom. O enfermeiro Javier, a dançar, sonhava o conto em uma palavra. Os quadrinhos de Gilmar, o sanfoneiro, não continham diálogos. Ocupado que estava com as transcrições dos textos de Madame, o enfermeiro Gaspare dormira seu desejo de redigir uma tese sobre a velhice. A doutora Dung Hanh dizia fábulas de vários países e as bordava em seda branca. Ela misturava fala, canto e agulha, às vezes suas tacinhas de porcelana a acompanhavam. As crianças adoravam ir ao ateliê para ver aquela deusa oriental a fazer mágicas. O senhor Estridian ora soava flautin, ora clarinete. O desenhista da lousa, senhor J.G. por vários dias a deixou em seu negror. A deusa de ébano, Joana, queria engravidar. A cabelos de fogo Matilde aceitou cortar os cachos rebeldes à altura dos ombros, remoçou dez anos. Sua esposa, Catarina, passou máquina três nos seus, ficaram estranhos. As senhoras alcoviteiras, cujos nomes escaparam a Madame, passavam bom tempo a dormir. A senhora Perséfone deixou de bordar. O menino Júlio olhava o mar sem parar, as tintas de pintar secavam nos tubos.
Nove mulheres, moradoras do dormitório dois, as que possuíam nomes de cientistas, sentavam-se juntas no ateliê. Bordavam e, em alguns momentos de inspiração, produziam clusters vocais. Usavam uma vogal, uma sílaba. Cecília, espécie de mentora do grupo, iniciava o processo. Vera e Lise acrescentavam os tons para uma tríade. Jocelyn modulava em um semitom, acima ou abaixo, ora a terça, ora a quinta, a sétima, invertia a nona, a décima terceira, criava nuances tocantes. Annie era expert em melodias. Irène, Marie e Florence eram as percussionistas de boca. Em alguns momentos, elas apoiavam os pedais dos acordes. Claire acrescentava baixos extraordinários. As vozes eram curiosamente jovens, para mulheres passados os oitenta anos. Os timbres, únicos. Com as ambiências vocais, Loto contava fábulas. Gaspare passou a gravar os momentos de contação, primeiro em seu celular. Depois, com o apoio do terapeuta William Blackwood, instalou uma mesa de som, microfones de amplo alcance e luzes, um pequeno palco. O músico Te Dan passou a participar do grupo. Logo outros instrumentistas, entre pacientes e enfermeiros, fizeram aparições especiais nesses eventos. A senhora Chang tocou piano e cravo vária vez. Inusitado momento, o sábio Wong Bohai recitou Precioso barco da paz exaltada, uma reflexão sobre o cuidado de si e dos outros.
Madame, durante a escuta dos saraus, se punha a escrever. Contou que o capitão-mor Alois encontrou a mulher do camisolão na margem direita do Tejo, Torre de São Vicente a par de Belém. Ela olhava, se demorava, o rinoceronte mal enjambrado. Alois fez-lhe um gesto que, se não o conhecessem um pouco, diriam recatado. Guardado no externar, comedido, respeitoso. Gauche não, que aí seria muito. Um dar com a mão assim de longe, aproximação branda, que não queria embaraçar. Uma boniteza, não doesse feito corte de alabarda. Como explicar o sentimento que o senhor da casaca púrpura despertava? Um recém-nato depois de lavado, vestido, amamentado e adormecido, a agarrar o dedo do pai, assim era o tamanho do sentir. A visão pode abraçar, e só, precisos ouvidos de escutar. Ah, homem esplêndido. Quanto a vida lhe fora generosa, que porte, que riso, que força, que olhos o viam assim. Só visitar-lhe a alma, para descobrir dor e recurso. E que dor. Assim, a mulher do camisolão o notou, na primeira vez em que se viram. José Gaetano daria uma frota por este encontro. Daria a vida por ele. Não havia do que se envergonhar, era admiração genuína, que só atormentava quando acontecia aquilo de errar o caminho, rodar feito pião, quase a chorar por conta de tanto desencontro e o tempo a correr, esgotar. Havia sol entre nuvens e um bando de gaivotas em torno das faluas. Havia o casaco púrpura e a mulher do camisolão, que delirara durante a noite. Lua nova. Inverno. Embrulhada às lembranças, aos suores, as costas em brasa.
Outra mulher, a dama preta do doce de marmelo, havia cortado a camisa de José em tiras largas atrás, o que mantinha o ferimento dele refrescado e com menor chance de zangar. Parece que, em terra, havia recrudescido a imunidade do comandante. Talvez o calor, ou seriam as intempéries da praia, a água de beber, lavar, a idade que branqueava os cabelos. Ou tanto tempo de saudade tanto tempo de saudade tantotempodesaudade. O mistério das viagens tornou à gaveta, na cabine da Sor. Os relatos permaneceriam em Santos, Brasil, a rondar as ondas, silhuetas sem nome, os atóis, altiplanos inspiradores, dunas, dunas, dunas que as praias de Santos, Brasil, não possuíam. José Gaetano estava uma mistura de láudano, alecrim e cravos de defunto, coisa triste aparentemente, o dia dos mortos próximo passado. Na página do diário, a cruz celta assombrava o cabeçario, aguardava ansiosa pelo epílogo.
Na medida em que o capitão-mor avançou na direção dele, tanto tempo longe de Lisboa, o povaréu se acotovelava em agitação de feirante. Havia pelo menos cinco mil gentes indo e vindo, entre carroças, baús, sacos, librés, chapéus, ombreiras, botinas, cães sem dono e trouxas sobre o lombo. Havia passado, há muito, o tempo de extermínio dos gatos. As pulgas, bem, as pulgas. Bichos aos berros, pregões de toda sorte, crianças arrulhando, correndo, amendoim torrado, bananas, mangas, cuscuz, rosários, bandeiras, toalhas, rendas, flores, burros, mulas, barris de detritos, milho cozido, carne frita, verduras, todo tipo de mercadoria, especiaria, olor, odor. A mulher do camisolão, José quase tropeçou os babados e não a viu. Uma trinca de brasileiros varridos pelo sol a disputar camelódromos, portas abertas, fechadas, simpáticas, sisudas, seria Santos, seria Lisboa? Caminharam lado a lado Alois e José, mais quietos que falantes. Faltou aquele abraço caloroso que o comandante trocava com outros. José temia os abraços, temia não poder voltar deles, ou a eles. Sentia jogar-se contra cerca elétrica. O bucaneiro temia o temor e isto era sensato. Sem entregar-se, privava-se do sabor. Melhor assim, a consciência ralhava. O que o capitão-mor recebeu foram tapinhas inconclusos no joelho. Tanto tempo. Era mesmo para silenciar. Crença pueril no deslocamento das almas, elas a valsar, plasmadas, nas nuvens. Depois de muito rodar, ambos encontraram uma taverna de italianos. Curiosamente, serviam lá bacalhau à moda. O tempo, contado. O Cabral partiria com uma esquadra dali a cinquenta minutos, para as Índias. Alois Donis ia com ele, de capitão-mor. Apontou o talho nas costas. O olhar dizia mais que as mil páginas de Quixote e nada dizia de decifrável. Horizonte rumoroso. Um misto de longura, brevidade, vazio, estrangeirice. Inverno. As vidas, únicas, separadas pelas circunstâncias, por que assim tinha de ser, se encontravam no mar, nas cantigas de marinheiro. Malha tecida em sargaços. Terminaram de cear os dois, ainda quietos, desconforto. Viraram uma taça de Cartuxa e Donis, ternamente, beijou os cabelos brancos de José.
O marujo ficou no cais, muito depois de o Cabral ter cruzado a arrebentação. José escutava, na memória, o recitativo Precioso barco da paz exaltada. A saga do monge em busca das escrituras budistas.
Tremor, dor, a bateria da cadeira de rodas suspirou. Madame ficou parada no meio do corredor, saída não se sabe a que horas do ateliê. Seus olhos teimaram em acostumar-se ao escuro. O cheiro da cidade era mais empesteado que Délhi. Qual cidade? Madame sentiu o coração de José no décimo dia de calmaria. A página do diário de bordo, vermelha, se empanturraria de cânticos e desmoronamentos, ou versos corteses. Há quantos dias o velho deixara os escritos, sem os espanar ao menos? Era bem dele, ah, José, entristecer, calar, arrefecer e perder a mão. De onde ele empacou, apoiado a uma aroeira, José podia olhar a gávea em estando na Sor. Tu deves voltar para o caralho, pensou. Foi o que José fez. Capengou até o barco, não sem antes comprar um bloco de notas e um lápis de pedreiro. Escalou novamente o mastaréu.
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