Hospital Casaredo 93







Cabelo que partiu

virado à janela da furgoneta 

raio obscuro sobre o cacho mordente


 

Muito tempo ficou Madame sem mover-se, a frase diante dos olhos. Mantinha os dedos sobre o papel jornal. Olhou a tinta que lhe ia borrando a camisola. Estava a ler um dos contos do enfermeiro Javier, publicado no tabloide Dores&Risadas. Ainda não se dera conta de que um de seus escritos também figurava àquela publicação.

 

Maria anjo encontrou a senhora a cochilar, rosto úmido de choro, riscado a cinza de impressora. Sem acordar a paciente, tomou da página do periódico, o conto em destaque, e a prendeu ao pequeno quadro de avisos do corredor, ao alcance da cadeira de rodas. O restante do material, guardou à gaveta de cabeceira. Passou um lenço umedecido de calêndula pelos dedos e rosto de Madame. Não parecia, mas ambas regulavam em idade, Maria com mais cabelos, ainda acinzentados. A enfermeira chefe murmurou eu quero queee o meu caixão tenha uma forma bizarra, a forma deee um coração, a forma d’uma guitarra[1]. Mesmo a dormir, Madame sorriu. Instantes depois, segurou o pulso da enfermeira chefe, teve medo, por todos os que viviam sós. Sentiu que morreriam e dissolveriam, a sós. Maria seguiu a ninar, a serenar espíritos inquietos. 

 

Ouviu-se, lá fora, a algaravia do senhor da Nossa Senhora, homem ao mar, homem ao mar. Aquele foi o mote, Madame decidiu, por bem, despertar, pediu a Maria seu caderno de espiral preta e escreveu Alois não tardava. Chegou a um ponto de irromper em sonhos, a contar tudo. No último enlevo, Alois viera com convites para um sarau, imagens de festas, sua vida particular. Brincos, entretenimentos com afiliados, coisas de vida em aldeia. Rosália ouvia, ouvia bem e pensava nas meninas de sua família, suas irmãs. A vida que as dispusera em quatro cantos diferentes, incomunicáveis. Há pouco, encontrara a mais nova, sem o filho ao colo. Madame chorou duas lágrimas. O capitão-mor sorria e partia, sempre a correr, muitas coisas a fazer. Às vezes, chegava a Rosália, onde quer que ela estivesse em suas andarilhações, um fardinho de comida e caderno e lápis. Os mensageiros vinham a ela muito bem instruídos. Das emoções que a dona do camisolão sentia, das esperas, de sonhar, recordou pedras vulcânicas enfileiradas, empilhadas. Um dia veio uma, pedrinha argilosa, de um caminho da Galileia. Dezenas de outras dormiam na praia, a formar uma murada. Então um pesadelo, o caminho do Kherlen, o corpo de um mito, nu. As almas, de ninguém, choravam, espetadas pelas flechas. Degoladas, pisoteadas, estropiadas, sozinhas, uma delas acolhida pelo capitão-mor. A história humana conserva heróis e tiranos sob o mesmo nó das bandeirolas. O muro das esmolas é um lugar onde os andarilhos choram. Ali, depositam dádivas e pedem aos ventos por comida, gers e paz no mundo. Pedem, esquecem que a paz depende deles. O muro é a semente de crisântemo e o mingau de trigo sarraceno, a andarilhação dos monges, a fumaça do incenso. Talvez seja útil meditar sobre as moradas invisíveis do céu. O silêncio é cheio de viventes. O capitão-mor sorria e partia, a correr, muitas coisas a fazer. Rosália e José flanavam, bandeirolas esquecidas.

 

Quando os víveres escasseavam e a tripulação ocupava seus devaneios com sal, José Gaetano fazia silêncio. O porão da Sor, repleto de mercancias não comestíveis, aguardava. Muitos enriqueceriam, após mais esta saga, o bucaneiro era leal.  Os cobres tilintariam. O mar e sua beleza arguciosa tomariam conta da retina, serviriam de cantochão. José agradecia. Eu te conduzo, cantou ele, te dou o apoio de que precisas para as tuas paráfrases, ó mar. Poesias te dou, desde que embales as correntes, não penses, embales. Eu entoo contigo, ao teu coração, enquanto tu singras.  Te dou a lua nova do teu nascimento. Mesmo que o destino sorria uma prisão, ou pouso, ou respiro, fim dos amores, solidão, estes presentes divinos que te deixo ver, as montanhas, pássaros, flores, quasares e o fundo dos olhos daquele moço com tanto a fazer estarão atados ao teu espírito, compondo-te. Nem tudo é desconforto e ausência, bem sabes. Houve instantes em que um abraço era o necessário para que eu confiasse, tu sabes. Um olhar, uma nota a vibrar junto da tua, a mostrar distintamente o pobre, o adorno e a demanda, a alegria e o nada. Já tens estes padrões, mar terno, agora voga, voga, voga, umauá aná angá etê metê uru mi e nê iê. Flora azul de gerânios, oásis em curvas sinuosas, gozo sobre as ondas. Oh, doce ilusão em olores celestes, ocaso de girassóis, ramagens retorcidas, gozo das inteligências, do conhecimento, da coragem e amizade, oh doce, flora rubra de tulipas, canção olival, gozo correspondência, oh, doce ode, índigo, violeta, contas de flandres, gozo que dure, oh, rimas de foto antiga, ó cabelos que já vão.

 

O senhor da Nossa Senhora debateu-se, relutou, a tarde caia e os enfermeiros amigos precisaram intervir. Subiram ao andaime, forçaram a descida. Gilmar pôs-se a cantar eu não sei dançar, eu não sei como se dança, vamos, vamos, muitas coisas a fazer. Alev, o homem invisível sapateou a sarabanda. O brinco bastou, o velhinho cedeu. 

 



[1] Guitarra. Pedro Ayres Magalhães.

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