Hospital Casaredo 92



Delírios de comandante

Parado, a camisa no respaldar da cadeira, o ferimento ainda não permitia roçares. Ah, José Gaetano, a dar seus quatro passos pela cabine da Sor. Fazia calor na baía de Santos, Brasil. Calor abrasador. O pirata tomou mais beladona que o necessário, amoleceu, recusava-se a deitar. Cova sem ar e sem saída, era o que ele tinha para viver naqueles dias de quarentena. Cabelos emaranhados, cheiro de enxofre. Alto mar de primavera lá fora, espera. José preferiu descansar na lembrança do ombro de Alois, aquele homem que tinha coração livre, quem te conhece que te compre. O organismo reagiu ao líquido das tonterias, amanteigado. José se fez resignado na saudade, saudade pântano, saudade bruma. Quase ebriedade. Se teimava em permanecer menino, aquele ombro era ombro de mãe. Mistério sombra, olhos turvos, gritos roucos, ventos amenos, outra cova, peixe ogro, batel revirado, convés cheio de caixas, saia revolta, laço de avental, botões a saltar, cruz de malta, almíscar. Homem ao mar. Homem ao mar. Homens dividem o leme, a espada empunhada e o berço improvisado. Jamais se darão a conhecer, quanto mais entregar-se. Desejo de saber o que vai, o que está por detrás, o que vem na direção, o que passou a chispar? Pobres das mães, meninas também, a ceifar estes homens a mar. A perna tem incomodado mais desde o talho às costas. José carrega as paralisias inconfessas, as atrofias  musculares, e tudo é quase consolo. Quantos medos? Quantas mortes? José, aquele que se gabava de não querer mortes no seu contrato. Ora, se o grande intercurso com o mar inspirasse perda, esquecimento, os hiatos de tempo, anos a fio sem esperança ou sorte, o homem não seria ingrato dessa maneira. O silvo de agradecer. O comandante não poderia queixar-se de falta de gozo. Tampouco por não viver paixões tórridas, aventuras hilariantemente inventadas. Jamais esteve ausente da Música. Das Musas, faces da Lua.

Uma dama rondava o cais, sozinha na madrugada, dava para sentir-lhe a mornidão das faces. Pernas a mostra sob a seda verde, o vento a agitar a pouca saia, os cabelos, nem bons ou tratados. O sorriso da saloia, desdenhoso e sarcástico disfarçava a timidez, uma tristeza de provocar misericórdia, translúcida naqueles olhos azulágua, lazuli. Não lhe soubera o nome o José Gaetano. Deitou. Fez com ela o que tivera de Camélias, Normas, Isoldas, Julietas, Carapiaçabas, Marlenes, Edith, as sagas mais anchas de seus romances de cavalaria. A ararinha azul arengou, cúmplice, apoiada à borda da escotilha, uma pena sua enfeita hoje o lápis do comandante. Alois é canto de ave. Rosália, uma tarde de Alfama. Quem se importa? Khi-Rho[1], passagem valiosa de vidas desvalidas. Outono.

Alois move os pés nus sobre o areal úmido, sorri e isso é tudo. Seca a saudade de alguém, de mar e lua, de capitão-mor. Empresta o triuriar, posto que está o oceano a dois passos de nós e o brilho prateado do mundo, à janela, dá-nos adeus. Alois, canto de ave, cerca minha saudade, com fogo e terremoto e chuva. Salga a melodia, que em meu peito o silêncio dói. Quando  vais voltar, cantiga do coração? Dorme o ombro estraçalhado, tormentoso, ao som da beladona. Céu e algo de brandura enche a cabine de ilusão. Alois, canto de ave, agora a pronúncia é clara, a ararinha chama por Alois. Ainda febril, José Gaetano tem fome, se levanta, entre sonolento e mareado, e vai buscar Maden Pedro mestre. O homem está diante do fogão. Ó pá, que estás em pé, comandante. Folgo ver-te a restabelecer-se. Estou a assar uma posta, sei que aprecias, e nem tenho que competir com os párocos, em disputas de refeitório. Estarão a faltar os pimentões e as olivas, hein Maden? Batatas ao fundo da travessa, azeite generoso, cebolas roxas para guarnecer.

Maden se tornou bom companheiro em tempos sombrios. Atencioso, gentil, para um homem de póvoa era gentleman, por isso mesmo bom moço, sutil como cordeiro, atento feito lobo. A doçura da dor temperara aquele caráter, cuja essência de lavanda rescendia com o passar dos dias. Não era subserviente, tinha satisfação em servir. Poderia comandar, caso o caos se alongasse. Mantivera as instalações da Sor habitáveis, os cordames avivados, as velas no ponto de enfunar, caso eles resolvessem se por em fuga ou transgredir as ordens da Armada Santista. O rapaz garantia ótima alimentação naquela precariedade. Quase cem dias de convivência a bordo, Maden e José Gaetano. Trinta e dois deles, presos no equador. Um sinistro, quatro dias de bons ventos, o pedido para aportar negado, três dias de surto e o dia de hoje. Dia, aliás, de celebrar os mortos, que a Santa Sé tem dessas coisas. Sentado sobre um barril, José Gaetano lembrou-se de uma historieta, contada por um padre amorável, do Santuário de Santa Cabeça. Um menino o viera chamar para encomendar o corpo do pai. Ao chegar à funerária municipal, o padre se deparou com um quadro pungente: o corpo mal enjambrado jazia num ataúde que era mais caixa de frutas. Não havia alma viva no recinto. Ao lado da cabeça do morto baloiçava uma garrafa de desinfetante, daquelas de plástico verde, cheia de terra, com uma flor espetada em ela. O menino ficara sentado na calçada. O padre fez a prece de corpo presente e veio sentar-se ao lado do menino. Ele é seu pai, perguntou? É sim, sior.  Vocês não tem mais ninguém? Não, sior. E agora, o que vai ser? Sei não, sior. Precisamos enterrar seu pai. Comu qui faiz? O padre, de coração partido, pediu clemência à diocese e fizeram um enterro para o homem. Cova rasa, cruz com o nome que o rapazito informou e salmo vinte e três não lhe faltaram. Quanto ao menino, bem, disso a história não tratou, que hoje é dias dos mortos. Demorou um pouco e Maden falou bem comandante, se nós dois nos formos desta vida, concomitantemente, nem ao mar, nem à terra. Ah, Maden, alguém da Armada há de nos atirar, talvez até enleados à bandeira portuguesa. Ou tocam fogo na Sor. Somos mais que pobres diabos, homem, desterrados, mas um pouco mais que pobres diabos. Tu falaste em não sermos presunçosos, senhor. Maden, trata-se de termos, por nós mesmos, certo respeito. Alguém compadecido nos dará o descanso final ao corpo, creia-me. Já do padre, do filho, da flor e do desinfetante, o que mais posso dizer? O padre bento ensina a viver bem a vida, a servir aos outros, como tu fazes. Pede que se evitem choraminganças e lamuriações. A não se ter preguiça e viver, o melhor que pudermos, na lide com o bem. Assim, morreremos com a certeza do dever cumprido. Já te escrevi o memorial, ó Maden, todos vão saber que foste bravo e misericordioso. Podes fazer o mesmo pelo Ezo, perguntou Maden, escrever-lhe a história? Tu o farás, breve, ó mestre.

José, passado o tempo de Santos, Brasil,  rumou ao Cabo das Tormentas, entrou em Bengala. Ali, se deu  período curtíssimo de encanto. O porto valeu ao homem lirismo suficiente para um diário inteiro. Dias de fumaça, de corpos de Gauguin. Depois, Mar do Norte. Ali, o comandante descobriu que sabia inventar histórias de neve. A senhora dos peixes, aquela de Superagui, voltou a um parágrafo. O marinheiro branco acercou-se da menina moça. Roliça e tinta de sol. Riso fácil, tudo era cócegas. Ela deixou, o marinheiro ceou, ela aprovou, gozou. Cearam por muitas luas. O homem, de afogado, passou a querido. E não saber-lhe o idioma deixava mais apetitoso o mato daqueles escuros aloirados, fundo verde. Pendurados a cipós, baloiçavam, cismavam, ceavam os nubentes. Os encontros, sempre quando o sol se punha no morro, suor e terra. A gravidez não tardou. O homem musgo sumiu, flechado. A pele clara e os olhos verdes nascidos, aquele misterioso enredo, acabou sozinha na tribo, para contar outra história. 



[1] Símbolo crístico, usado, em textos gregos. Constantino, o imperador, o utilizou como lábaro.

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