Hospital Casaredo 87
Amores de jornal
O jornalista Jeronimo Alcântara perdera um pouco a mão em seu pasquim. Criticado como duvidoso, imaturo, Jeronimo punha no Casaredo expectativas exacerbadas, como se o lugar fosse capaz de o redimir. A tendência sensacionalista de suas manchetes, de certa forma, inspirou as ocorrências que envolveram o ex fotógrafo Vilar e a esposa do enfermeiro Javier. Anunciava-se, era o que todos pensavam, um final inevitável para aquilo que deveria ser instrumento de divulgação da saúde e bem estar.
Dissolvida a parceria com o fotógrafo obscuro, Jeronimo sobrevivia de anúncios antigos, elixires, cápsulas e outras mezinhas, que ajudavam alguns pacientes e a outros nada. Encontrava-se, nas poucas páginas redigidas, alusão a florais e homeopatias, poções e unguentos artesanais, nos quais muitos acreditavam. Os demais produtos de boticário iam e vinham. Alopatia, o jornalista tinha por princípio não divulgar. Falava, isso sim, dos componentes das fórmulas, da validação de pesquisas sobre determinados laboratórios. Chamava a atenção para as vacinas. Indicava postos de saúde e com quem falar lá dentro para as tomar. Jeronimo descobria benzedores, produtores de cataplasmas. Fazia entrevistas com vários médicos, psicólogos, terapeutas, acupunturistas. Visitava diversas casas de auxilio à criança, ao idoso, também hospitais, clinicas, abrigos improvisados. Com estes assuntos, mantinha um número razoável de leitores, que escreviam cartas, pediam conselhos, curas. O almanaque, nome mais adequado para a publicação, chegava regulamente ao Casaredo, por posta restante. Os enfermeiros habituaram-se a ler e comentar os artigos. Os quadrinhos do enfermeiro Gilmar, quando introduzidos em um dos números, chamaram a atenção de novos leitores. Esta novidade muito alegrou ao hospital. Os textos de Madame ganharam uma coluna semanal. Gaspare se incumbiu de enviar os episódios, num tempo em que jornais impressos rareavam. Em poucos dias, após a publicação do terceiro capítulo, o número de cartas e telefonemas duplicou na redação, obrigando Jeronimo a contratar uma estagiária. Gisela Gato tinha dezoito anos, era atenta, diligente, loura dos cabelos encaracolados, longilínea, olhos lilases. Logo revelou habilidade para falar com pessoas e conseguiu novos contatos, patrocínios e apoiadores. O almanaque finalmente ganhou nome, Dores & Risadas. No começo, a chamada pareceu não pegar. Semanas depois, contava com leitores de vários lugares do mundo.
J.G. não vai morrer. Esta a manchete da segunda-feira, vinte de dezembro, o inverno em vias de soprar seu vento uivante. Foi também o que todos disseram na manhã do pandemônio. O choro e alarido se espalharam como rastilho pelos dormitórios, o sol nem bem despontara, coberto de nuvens. O homem caiu do leito pouco antes da enfermeira chefe Maria chegar com os cuidados matutinos, bateu seriamente a face no chão, quebrou o nariz e dois dentes da frente. Foi transferido sem demora para a enfermaria, onde dois enfermeiros novos prestaram os primeiros socorros. O doutor Wong Lam analisou a tomografia, realizada de imediato. As imagens denunciavam sangramento no córtex frontal. Na UTI, estudou-se a necessidade de uma cirurgia para drenar a hemorragia. Decisão tomada, o procedimento foi executado pelo doutor Luiz Pedreira. Os sinais vitais do paciente estavam estáveis. O coma induzido protegeu J.G. nas primeiras horas. Ele foi entubado e precisou ser mantido sentado, cabeça inclinada para a direita.
Nos corredores, tal qual um campo de esportes, gritos, espasmos e choro prosseguiam. O reforço dos novos enfermeiros tornou todo o movimento aparentemente caótico. A contenção, sem uso de medicamentos ou de isolamento, foi prontamente chefiada pela enfermeira Matilde. Ela aprendera novos métodos menos invasivos e andava satisfeita com os resultados. Sorria mais agora, sem temor de perder o padrão rígido com o qual era reconhecida, por colegas e pacientes. Tornou-se mais humana, mais atraente, portanto. Seus cabelos ruivos brilhavam, devidamente trançados. Seus olhos, antes pura eletricidade, agora deixavam ver um misto de queda d’água, monjolo. Quem apreciava estar a seu lado era a enfermeira Catarina. Ombreava com ela nas ações. Catarina era o algodão, o forro, a termodinâmica. Nenhum som saia de seus lábios, ao contrário dos de Matilde. No entanto, os braços fortes da ucraniana eram capazes de imobilizar o mais rebelde dos pacientes. Isidoro Brando foi o que mais se debateu, nesse episódio de socorro ao senhor J.G. Seu diafragma ficou imobilizado e foi necessário massagear logo abaixo das costelas, para que o aposentado cantor pudesse se lembrar de como respirar. Com movimentos largos, fortes, Catarina devolveu-lhe a função. A deusa de ébano Joana se aproximou, cantou com voz grave e profunda algum tema de Sá Noronha. O homem olhou a enfermeira, meneou a cabeça, sorriu e dormiu.
O senhor Estridian, preocupado com o amigo isolado, apenas empunhou seu flautim, que permaneceu mudo. Perto do meio dia, os comentários de corredor eram otimistas. O quadro de J.G. permanecia estável. Todos os que sabiam e podiam executar os exercícios do doutor Wong Lam trabalhavam pelos espaços internos da casa, moviam energias de pleno restabelecimento. Eram braços erguidos acima da cabeça, mãos em posição de lotus, ou gratidão ou purificação. Alguns, várias vezes, mudavam a posição das mãos para a frente da testa, para a frente do peito. Começou a chover. Os pacientes foram, aos poucos recolhidos aos leitos, as crianças e alguns animais foram levados ao salão de atividades. Mantiveram-se diferentes afazeres. Chá de alecrim e galhinhos da planta surgiram, como que por encanto, pendurados em fechaduras, vãos, números das portas, pequenos vasos.
Madame tinha bom senso e responsabilidade ao contar as histórias do Casaredo. Sabia que, dependendo do fato ou da forma de narrar, divulgava-se uma comunidade movida a charlatanismo e experiências frívolas, fantasiosas, ou um centro de excelência em cuidados paliativos. Um bordão que a senhora notabilizou foi eles não sabem da ópera a metade. Seus comentários convidavam os incrédulos a visitarem o espaço, em especial o Ateliê Loto. Por aqueles dias, o enfermeiro Gilmar e a doutora Dung Hanh aplicaram técnicas de danças circulares, com o apoio dos demais músicos do hospital. Na areia, foram reunidos cerca de cem participantes, na primeira roda.
Marieta, a atual fotógrafa do Dores & Risadas, veio ao hospital para registrar o cotidiano, com a permissão da senhora Chang. Madrinha de uma das crianças para adoção, nascida há vinte dias, vinha também inteirar-se do estado do nascituro. A mãe biológica já havia deixado o leito, sorrateira. Usuária de drogas que estava, não aceitou o programa de reabilitação que lhe foi proposto, rebelou-se. A criança, que nascera com um quilo e meio e ficara muitos dias na incubadora, estava sob os cuidados da enfermeira Josefine, aguardando os trâmites legais para que Marieta pudesse levar a afilhada ao próprio lar, onde a criaria como filha. Algo se mostrou errado com a saúde da menina no dia da visita, ainda não confirmado pelos exames. Imaturidade do HHT[1] era o mais provável diagnóstico. Ninguém no Casaredo ousou ponderar com a moça sobre a desistência do processo de adoção. Marieta recebeu a noticia logo cedo, no meio do alvoroçado acidente com o senhor J.G. Pálida, cantarolou ao lado do berço por longo tempo. Tinha vinte e cinco anos e sempre quisera ser mãe. Decidira que não geraria um bebê. Apaixonou-se pela menina nos dias do encontro sobre hipossuficiência. Josefine conversou com a moça o dia todo, até provocou acrimônia em suas inseparáveis companheiras, as enfermeiras Clarice e Bernice. O diálogo gentil auxiliou Marieta a tomar a decisão.
O bebê estava com cinco dias quando Marieta o conheceu, em sua pequena caixinha incubadora, emoldurado por fios de estimulação neuronal e soro. Era uma bolinha enegrecida. Pérola, la negra, nome dado a ela pela doce Esmeralda. Tudo se desenrolara a contento, dentro dos padrões, até o décimo segundo dia. A partir daí, o quadro do bebê passou a emergencial em questão de minutos. O amor de Marieta floresceu. O de Esmeralda igualmente. Nesses casos assim tão graves, só mesmo uma ideia sensata para assegurar sanidade a todos. Foi o enfermeiro Gaspare quem a sugeriu, em meio ao choro convulsivo, vindo dos dormitórios. Marieta, entre anestesiada e comovida, fora à Capela Rosália, para rezar. O músico Te Dan enchia o ar da neve do Nepal. A fotógrafa penetrou nessa imagem, subiu geleiras, pediu coragem para o sentimento que a envolvia, uma pequena cachoeira a descer de uma encosta. A sensatez permitiu que Pérola morasse no Casaredo. Marieta seguiria sendo sua madrinha, dispensaria a ela os cuidados e afetos necessários. Te Dan, que já apadrinhara três meninos, faria as vezes de padrinho. Mais tarde, quando a experiência de madrinhar se fortalecesse, a moça estudaria outra adoção. As papoulas, que desabrocharam em profusão naquele dia tenso de final de outono, confirmaram a boa solução para Pérola. Esmeralda, que intuíra no bebê sua boneca viva, irmã de alma, foi a que mais comemorou o gesto. À tarde, no ateliê, logo que a calma tornou ao hospital, a irmã do menino Júlio começou a tecer uma manta de crochê, em fio de lã dourado. Separou madrepérolas negras e brancas, para enfeitar pequenas flores nos quadrados que iam surgindo. Igualou ao Africano, o senhor do tapete mágico, em velocidade e agilidade, na confecção da manufatura. Alternadamente, coseu também uma casaca branca para o irmão, a quem chamava, espontaneamente, Milante. A peça foi enfeitada com botões e abotoadura de madrepérola preta.
Madame desenhou a cruz cristã na página dedicada ao senhor J.G. O caderno agora era de espiral preta. Ainda não fora possível avaliar a repercussão de seus escritos publicados. O fato de eles aparecerem no almanaque não representava ganho moral para ela. Mamã assinou papéis que lhe garantiam autoria e royalts. Estava lúcida no dia em que assim procedeu. Havia testemunhas da Desembargadoria e do Casaredo presentes, o senhor Giulionni como seu representante legal. Gaspare, tutor de Madame, também foi enquadrado em leis que o amparavam na tarefa de redigir e publicar. Cada edição trazia o título geral Hospital Casaredo: lembra-te sempre de mim. Logo abaixo, assinavam Madame e Gaspare Jordano, ele como participação afetiva. A coluna abria com um resumo do capitulo anterior e um subtítulo para o novo episódio, caprichosamente ilustrado por Gilmar, o que valorizava ainda mais a publicação. Muitas cartas de leitores foram entregues à redação do Dores & Risadas, com apelos para conhecer a senhora, o hospital, com doações e presentes, agradecimentos, feito espuma do mar. Como havia bastantes capítulos, Jeronimo decidiu publicar a coluna duas vezes na semana. A técnica de escrita livre evoluiu, naturalmente, para contos breves. O sábio Wong Bohai ponderou com Giullioni sobre futuros, ambos tinham os pés no chão, melhor fruir cada página do jornal enquanto Madame estava na Terra. Jamais seriam levianos, vaidosos, jamais cometeriam usura. Jeronimo Alcantara foi legalmente avisado.
Os contos de um só parágrafo, criados pelo enfermeiro Javier, andavam a abalar o Dores & Risadas, quem sabe se pela fama do bailaor nas freguesias próximas ao Casaredo. Suas performances de flamenco também eram noticiadas no tabloide. Ele dividia uma coluna com três escritores jovens, um deles de uma casa de recuperação para adictos, produtor de textos autobiográficos. Outro era pediatra, contava historias de nascituros para crianças pequenas. A terceira contista, a mais preparada dos três, sofria de cegueira congênita e seus trabalhos eram publicados também em braile. Seu tema favorito era a claridade.
Jeronimo Alcântara, sempre que perguntado, deixava claro não saber o que fazia. Não planejara os rumos de seu tabloide. Abandonara o perfil stand up dos primeiros anos e abrira trilhas promissoras no campo do jornalismo voltado à saúde. Recebia criticas de várias frentes, como se sabe, que seguiam a taxar seu trabalho de piegas. O homem andava feliz. Uma paixão em embrião, platônica, punha o jornalista em estado de cuidado. Ele se propôs a permanecer incógnito, até que pudesse deixar o Dores & Risadas administrar-se sozinho. Tal comoção, a ponto de por tudo a perder, rendia-lhe dias de embriaguês e uma rosa a mais, enviada em buque iniciado com três, todos os dias. Gisela Gato ia picando as desfolhadas, para transformar em sachê de gaveta. As demais, conservava em um vaso de cristal que trouxera de casa. Não fazia ideia de quem era seu galanteador.
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