Hospital Casaredo 86
O tapete mágico
O desenho da cruz egípcia voltou à página do diário de bordo de José, que, há muito, andava sem uso. O litoral santista serviu para rejuvenescer o velho marujo. As viagens estavam guardadas nas bolsas sob seus olhos. O ar renovado, as águas do Canal Bertioga, as andanças solitárias, as comidas da dama preta do doce de marmelo o reinventaram. Era como se José recebesse a chave da própria existência, como se inaugurasse um bairro novo no Monte Serrat, o mesmo que desmoronara recentemente. O corsário girou por muitas trilhas, cantarolou, cismou, sorriu. Gingou, mergulhado no alarido da praça particular, repleta de bandeirolas, de mãos dadas, adonou-se de sua rota.
Madame, muito entretida, interrompeu com dó a narrativa. Vieram busca-la na capela. A semana de atividades em prol à vida se despedia do primeiro dia e queriam agradecer pessoalmente, por sua contribuição na cozinha. Sem descaso, deixou-se conduzir por Josefine até o salão, certificando-se de que caderno e lápis estavam a salvo, no bolso da camisola.
O advogado Giulionni não era muito dado ao convívio com os pacientes, por pudor. A fala, cheia de sotaque, induzia ao sono e à imaginação. Fez lembrar, por alguma razão, atuações de Sophia Loren. Madame cochilou vária vez, o italiano a defender as leis de auxilio humanitário. As cadeiras haviam tornado à sala, agora enfileiradas. Mais discursos, mais gratidão e quando Madame foi ovacionada pelo seu bacalhau à moda, sorria a dormir, o que causou uma onda de alegria na plenária. Algo jovial naquele gesto, como se recolhida a si, em respeito a tanto empenho. Gaspare, um gentleman, sussurrou ao seu ouvido a canção Lembra-te sempre de mim, o que a fez abrir os olhos devagar, deliciada, sem entender que os aplausos eram para si.
Para fechar a sessão, a senhora Chang ofertou aos presentes a serenidade que adquirira, afirmou que o dia seguinte seria belo para firmar os nascentes laços do compromisso com o cuidado. A hipossuficiência, tema controverso, jurídico, recebera as primeiras luzes durante aquele dia. O espaço do Casaredo, idôneo, inspirava revisão deste e outros conceitos sombrios. Que voltassem todos, que se habituassem a visitar a Casa, para trocar experiências, praticar, estudar, receber socorro, conforto.
Uma nova personagem, Marieta Videira, fotógrafa, veio ao Casaredo como parceira de Jeronimo Alcantara. Para aqueles que não se lembram, ele era repórter de pasquim. Os registos do encontro seriam primorosos, pela primeira vez apresentados em formato digital. As fotos e textos foram remetidos ao sábio Wong Bohai, para apreciação e liberação do material. O enfermeiro Alev fez a sua parte, sem corromper arquivo algum.
Outras estreias povoaram o cotidiano do Casaredo no dia seguinte, Madame não deixou de as assinalar em seus escritos. Fazia tempo, a senhora não ilustrava as páginas de seu caderno com cruzes. Para falar do que aconteceu no Ateliê Loto, usou a cruz ancorada. As portas do espaço, em função do sucesso de Vida – assim foi sintetizado o evento nas mídias -, foram abertas à comunidade local. Artesanias diversas, como tricô manual e tricô a máquina, tear, tiveram suas práticas iniciadas. Veio também a renda de bilro, a costura a mão e à máquina. Algumas instrutoras, de praias próximas, formaram equipes de aprendizes. O movimento, surpreendentemente, devolveu luz ao enfermeiro Manoel. Ele pode chefiar a ampliação do ateliê, auxiliado por moradores dos arredores, apoiadores do Casaredo desde o dia da travessia. Os pacientes estavam diante de novos incentivos à vitalidade. Quase não havia gentes nos dormitórios, a maioria ocupada com alguma manufatura. O doutor Itaú trabalhava em todas as frentes. Até tricô foi fazer, uma bonita manta para a mãe, ultimamente mais visível a todos, a observar a paisagem da varanda do sobrado onde morava com o filho.
Naqueles dias, uma afeição diferenciada aflorou para as enfermeiras Clarice, Bernice e Josefine. As três sentiram muito ciúme, e este foi o elo que as uniu. Ciúme de Matilde e Catarina, da doutora Dung Hanh, de Madame, da enfermeira chefe Maria, até da menina Esmeralda. Da senhora Chang. Ao invés de se consumirem em venenos, uniram-se criativamente. Os objetos que passaram a esculpir, em madeira, cerâmica, tecido, eram representações de um ícone, em geral três mulheres siamesas. A marca das peças sobreveio nos olhos, lábios, orelhas, seios, ventre, umbigo, coxas, nádegas, monte de vênus, generosos e belos. Cada artefato, moldado por seis mãos, chamou positivamente a atenção da senhora Chang. A senhora planeou uma pequena vernissage, próxima à sala de múltiplas tarefas, para expor As Sutis Mulheres, nome da exposição.
Habilidades diferentes de Alev, o homem invisível, enriqueciam a doutora Dung Hanh e a senhora Chang. Elas se desdobravam em muitos lugares, era assustador. Quando e onde elas conversavam, o que. Ninguém flagrava encontros entre elas, as ciumentas, menos. Só se as encontravam separadas, em dois ou três lugares ao mesmo tempo. Mesmo quando juntas no ateliê, cada qual fazia seu trabalho, sem contato sequer visual. Todos sabiam, contudo, que os movimentos em prol da saúde da mulher eram feitos a quatro mãos naquela Casa. Era como se as duas tivessem como ideal unir todas as cruzes existentes, para extirpar da Terra os sofreres. Lutavam para prevenir transtornos psiquiátricos do universo feminino. Pretendiam algo além dos exercícios respiratórios, alongamentos, dos trabalhos manuais, da prática artística.
O sábio Wong Bohai era beneficiado por este movimento, que lhe oportunizava liberdade para viajar pelo mundo. O administrador do Casaredo buscava material de conhecer, sobre casas especializadas em doenças psiquiátricas e reinserção dos pacientes na sociedade. As causas de tanta dor e crueldade, a história de casas de interdição, muitas próximas ao mar ou situadas em ilhas isoladas, eram o foco de sua observação. Com a pesquisa, o diretor pretendia equipar o Casaredo como centro de excelência em cuidados paliativos com a vida, desde a concepção até a morte natural.
Outro personagem insólito. Africano, um dos pacientes mais discretos e equilibrados do hospital, na casa dos oitenta anos, jogador exímio de capoeira. Terminou no ateliê, em poucos dias, um intrincado tapete feito à mão. A peça seguia os padrões da heráldica, em fundo bege. Era composta por quatro retângulos em tamanhos diferentes, contornados por malhas vermelhas. Cada retângulo continha iluminuras ilustradas com animais fantásticos, firmados a dourado e azul, além de insígnias, floreios e verbetes góticos em mesclas de carmim, dourado e prateado. Media dois metros e meio de comprimento por um e cinquenta de largura. A espessura era de um centímetro. O trabalho foi realizado com tal velocidade e agilidade que tornava impossível aprender a técnica. A menina Esmeralda o observou, durante grande parte da confecção, sob forte fascínio. A senhora Chang, igualmente encantada, pediu ao artesão para expor a peça em parede próxima ao grande espelho da entrada. O lugar adquiriu distinção, certa nobreza. O artefato, noticiado no pasquim de Jeronimo Alcântara, chamou a atenção de vários colecionadores. Após concluir o tapete, Africano dormiu, por sete dias ininterruptos.
A tapeçaria provocou como que um desnorteamento em Madame. A senhora tocava no objeto sem tocar, como se fora o punho de alguém. Tão leve e meditativa esteve, perdeu-se em brumas. Nem quando Manoel a tomou ao colo, como voltara a fazer após sua recuperação, nem mesmo em lhe beijando a testa, ou indo com ela sentar-se diante das ondas, nem isso trouxe Madame de volta. Este pasmo durou sete dias. Manoel cantou-lhe todos os fados de que se lembrava e o exercício fez bem a ambos. Um detalhe do bordado serviu como portal para o episódio de ausência, soube-se disso depois. A cruz de Santo André, dourada, encimada pelo rinoceronte ibérico, que figurava em um dos retângulos do tapete de Africano. Sabe-se lá que acontecimento o símbolo evocou na senhora. No sétimo dia, em dado instante, Madame olhou apavorada para o rosto de Manoel, como se a pedir resgate. O rapaz, de voz pálida, cantou para ela a Gaivota[1]. Não pode traze-la de volta da bruma de uma vez, mas sentiu sua respiração mais profunda, tranquila. A saudade parecia tomar forma e proporções de Dürer[2], para ambos. Os olhos vítreos, dos dois, guardavam algum por que, de uma jornada compartilhada antes, a bordo d’um navio de Penedo[3].
O caderno, agora de espiral azul, recebeu no frontispício a cruz portuguesa. Havia uma tristeza crônica a envolver Madame. O tratamento para este tipo de acometimento não recebia medicação alopática.
Afora a mania de atirar coisas, que agora caiam cada vez mais perto, as ranzinzices de Madame eram até afetuosas. Os atendentes afagavam o rosto dela e seguiam com suas tarefas, sem alimentar seus achaques. Os dias passavam, o grupo mais a amava, mimava, cuidava. Até os novos integrantes, em número de dez, logo perceberam que aquela senhora tinha a alma toda fora do corpo acabrunhado. O fenômeno se intensificava, sinal de que ela talvez não voltasse inteira ao cotidiano, daquele abalo, provocado por um tapete. Então Mamã surpreendeu, pediu para ir ao caramanchão, à nova ala do ateliê, ao jardim, perto da pedra de Esperança. À gruta, ao mar, várias vezes passeou com os amigos Gaspare, Javier, Alev, Manoel, o doutor Itaú. O terapeuta Blackwood intensificou a aplicação das luzes índigo em seu tratamento. Catarina cuidava dela na cozinha. Matilde era a filha audaz. Cada vez menos a equipe tinha chance de provar bacalhoadas. Ultimamente, Mamã produzia apenas uns bolinhos assados de aveia, um mimo. Gaspare estava sempre com ela quando ia ao ateliê. Ele lia em voz alta os registos que ela fizera, já devidamente transcritos. A senhora escrevia a mão, vagarosamente, enquanto o rapaz digitava novas páginas. Para esta ação, muita lucidez, parecia que Madame dedicava uma vida paralela. Os pedidos para escutar Chopin revelaram trégua em seu transe, para alívio de todos. Pelas mãos da senhora Chang, encantou-se com a música de um japonês, Riyudi Sakamoto. Escreveu, na primeira vez em que escutou Merry Christmas Mr. Lawrence, que a saudade era a ponta dos dedos da canção.
Os computadores foram instalados no ateliê em espaço separado das demais atividades por um fino biombo, tecido a partir de bordados a várias mãos. O enfermeiro Gilmar tinha ali seu próprio nicho, andava a ilustrar animes, além de criar maquetes para algumas companhias de teatro portuguesas. O rapaz conseguiu concatenar o trabalho do Casaredo com sua nova graduação, Arquitetura. Fez estágios no Brasil e, no momento, concluía os estudos na Universidade do Porto, para onde ia de helicóptero. Ainda encontrava tempo para sua sanfona, que tocava sentado ao muro, no turno da noite. O sábio Wong Bohai aprovou aquela renovação do jovem. Deu-lhe o apoio necessário para que cumprisse seus créditos sem precisar desligar-se do quadro de enfermeiros. A dedicação do rapaz aos pacientes redobrou. Os homens continuavam a ter dele o amparo de que precisavam para os ápices da velhice. O quarteto musical do Casaredo é que perdeu seu mentor.
Um janelão deixava ver o mar e parte da vegetação naquele espaço cibernético. Era possível acompanhar dali as crianças, que tinham um território ímpar de brincar. O menino Júlio, apesar de precocemente adolescente, ficava com o grupo, inventava histórias, ocupava os menores com fazeres relacionados ao mar. Os cães andavam por ali, em festa. Os gatos, nesses momentos de alarido infantil ficavam nos parapeitos, ou em estruturas elevadas, montadas por Manoel e Alev. Dormiam ao sol. Não longe, as aves marinhas alternavam seus ciclos migratórios. A diversão, na manhã de sexta-feira, consistia em capturar os animais para que o veterinário os vacinasse ou fizesse exames de rotina. Assim, a brincadeira ensinava a cuidar. O jardineiro Jair observava a tudo tranquilamente, a gratidão lhe conferira uma aparência alaranjada. Bastante envelhecido, era a pessoa mais feliz do mundo, a reviver o jardim ou a tocar harmônica nos intervalos entre suas tarefas. Ajudava os pacientes em tudo o que podia. Dirigia-se às senhoras sempre de olhos baixos, venerava Madame. Quando Gaspare lia seus escritos, Jair se demorava à janela, encantado.
Em uma quinta-feira solar, as janelas da UTI estavam abertas de par em par e podiam ser vistas do espaço das crianças. Não havia pacientes no setor naquele momento. Um choro de bebê se ouviu, alto e contínuo, da maternidade. Um nascimento. As crianças fizeram silêncio, que foi interrompido pelos brados de homem ao mar, homem ao mar. O senhor da Nossa Senhora oscilava, para frente e para traz, em pé no batente da janela aberta. Esgueirou-se para dentro da UTI, à revelia de Alev, que o conteve segundos depois. Depois do resgate concluído, o velhinho contou que procurava o sanfoneiro.
[1] Composição de Alain Robert Bertran Oulman / Alexandre O' Neill / Miro Raul Fernandez
[2] Alusão a uma xilogravura gravada pelo artista alemão Albrecht Dürer, no ano de 1515. A imagem foi baseada em uma descrição escrita e em um esboço, ambos de autoria anônima, de um rinoceronte-indiano que chegou a Lisboa no início daquele ano.
[3] Alusão a um poema de Miguel Torga
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