Hospital Casaredo 85
Uma casa ninho, Casaredo
A quarentena findou, afinal, suspirou Madame. O grumete Maden quis inventar para seu mentor algum poema alegre, burlesco, quem sabe um pastoril. Lembrou-se do Tirioni[1]. Ao invés de dar à luz, pediu a José Gaetano que dissesse um romance, uma saudade. Afinal, estavam os dois a vadear em terra estrangeira. Quando o comandante cantou um mistério, a vontade de navegar voltou. Maden afeiçoara-se aos fantasmas de José, em especial à pobre menina violada por piratas. Também a um filho degolado, o infeliz que não conseguia subir aos céus e assombrava mães, para roubar-lhes as crias, as mal amadas desde a concepção. Os dias marearam para Maden e não havia carga com que fornir a Sor. Demorariam ainda para zarpar. O rapaz foi, enfim, condecorado mestre pela Armada Santista. Emocionado com a insígnia, tirou do bolso da pantalona uma imagem, papel úmido. É minha mãe. Tu me farias gosto se a brindasse com uma cançoneta, il mio capitano.
Virgen de Conciliación
conciliadora dos tristes
Abraçai minha mãe forte
a cuidar lá dos vinhedos
José fez canção alguma à própria mãe. Por não sentir os amores parentais, o sorumbático tratara de aprender a ternura às flores, aos pintinhos, aos potros, aos pântanos, aos tachos. Naquela sexta-feira sem lua, a prece ideada quis chegar ao coração desfolhado de alguém. Maden rompeu em prantos. A dama preta do doce de marmelo enxugou os olhos no avental. Não havia mais a imagem de um rosto de mãe para se lembrar. Isto era o que José pensava.
Uma casa à sombra, uma casa aquecida, uma casa ninho, uma casa de janelas livres, voltada para seis sóis, uma casa barco, uma casa santa, uma casa firme, uma casa afável, uma casa para a tua nudez.
No Casaredo, a Desembargadora Luariz Sezna abriu a semana de atividades em prol à vida, difícil empresa, em tempos líquidos. Havia gentes da Cidade do Porto e Vila Nova de Gaia, algumas da capital e outras freguesias, incluindo Espanha. A campanha nacional entrara em vigor pelas redes sociais, tratava do cuidado com pessoas hipossuficientes, do papel dos cuidadores, da recíproca dos atendidos. O evento acolheria a negligência parental, sonhava mudanças positivas em poucos dias. Várias situações criativas seriam sugeridas, tomadas de decisão precisa viriam, a favor da convivência em família, entre amigos. Da concepção à morte natural é preciso cuidado, o texto do flyer argumentava. Talvez chocasse as pessoas o fato de elas não saberem o que fazer umas com as outras, nas mais corriqueiras situações. Ideias colhidas à Aprendizagem Situada[2] quereriam ajudar. O flyer era rico em ilustrações, a contrapor carinho e violência. Imagens de ação, com crianças, adolescentes, adultos e idosos, em espaços íntimos. Cuidar está implícito ao ato de viver, porém é preciso aprender a cuidar. O prospecto concluía com uma imagem do Universo e desejava a todos boa estadia nas dependências do hospital, durante três dias.
O evento teve início logo que o sol nasceu, o doutor Wong Lam na praia, a orientar a prática do Lian Gong. Ele contribuiu com doze movimentos simples e lentos, para realizar em pé, a privilegiar a parte superior do corpo, foco na respiração. Cerca de quarenta pessoas, a maioria mulheres, executaram a sequência. O músico Te Dan acompanhou os exercícios com doces melodias executadas no pipa. Algumas mães trouxeram seus bebês atados ao corpo em um canguru ergonômico, como foi recomendado. A abertura oficial da semana se deu pelas oito horas, após o desjejum, com lavra de ata, mesa constituída. Logo após breve discurso e orientações, o protocolo convidou ao desenvolvimento da criatividade.
O salão do Casaredo havia sido disposto em círculos dentro de círculos, sete no total, o centro composto por sete pessoas, que mais tarde se revelariam condutoras de tarefas. Madame estava no terceiro, entre a cabelos de fogo e a Catarina. Até barganhou, preferia cozinhar para todos, em lugar de permanecer perfilada. Nem se quisesse escaparia, fazia parte do processo dar testemunho de contenção. Durante o dia, todos aprenderiam que refrear também significa incluir. Madame teria seu momento de livre expressão, carecia paciência.
Os janelões, abertos de par em par, deixavam ver e escutar o barulho do mar. O terapeuta William ensinou como expandir a respiração. Exemplificou quatro gestos de inspirar, expirar e relaxar. Movimentos com braços e mãos, que lembravam voo, auxiliaram Madame a se sentir melhor no círculo, habituada que estava aos exercícios aeróbicos feitos com os enfermeiros Gaspare e Matilde.
Dois motivadores experientes, artistas cômicos, que se postaram no quarto e sexto círculo, contaram uma história em que as cadeiras onde os participantes sentavam eram países. Cadeiras abrigo, fronteira, acessório de negociação. Os anedotistas falavam ligeiro e para poucos escutarem, o que obrigava a alguns participantes multiplicarem o que escutavam, nem sempre precisa a comunicação. Em poucos minutos, ações peculiares passaram a ocorrer nos círculos. Por via das dúvidas, as pessoas deveriam manter suas cadeiras seguras, para poder voltar a elas em caso de alerta, produzido por um megafone. Os comediantes fizeram todo tipo de pantomima, de abraçar, segurar, subir, passar por baixo, montar sobre a cadeira, sempre dentro do perímetro que cabia ao seu círculo. As tarefas iam-se expandido e complicando. Os olhos dos participantes não deveriam dirigir-se a outra coisa que a cadeira. Para saber o que estava acontecendo ao lado, era necessário usar o ‘rabo de olho’, olhar sombras no chão. Havia muitos participantes atônitos, as faces um tanto enfermiças. Mesmo assim, risadas contagiaram o salão. Algumas cadeiras começaram a sumir. Boatos se espalhavam, imperceptíveis, sobre resgatar cadeiras e pessoas em cômodo contíguo. Pareceu rastilho de pólvora. Quem conseguia sair do círculo e do espaço, passava por um túnel feito de pano, era revistado, convidado a apresentar as credenciais do evento – muitas bolsas sumiram. Questionários verbais foram administrados, em idioma cênico. Os gestos orientavam por aqui, por ali. O número de detidos, em medida cautelar, foi aumentando exponencialmente ao sumiço das cadeiras. Os dois comediantes mantinham a ordem no caos, conduzindo vigorosamente a atenção da plateia para sua cadeira, arrancando-lhes ainda mais risadas. Logo os participantes se deram conta de que jogavam lenço atrás, gato e rato, resta um, dama, até xadrez. Era palpável como os raciocínios se aguçaram. Lá fora, o jogo policia e ladrão. Alguém das rodas, voluntário, aparecia para afiançar verbalmente um interditado, sem barganhas, apenas com o compromisso de cuidar dele durante o evento, atendendo a normas estabelecidas. Ao voltarem para os círculos, ambos, liberto e cuidador, sem suas cadeiras, eram estimulados a apreciar a posição em pé, a alongar-se, respirar. Os círculos começaram a se mover, feito serpentina.
A ciranda ganhou voz. Aqueles confinados em suas cadeiras, por limitações físicas, encontraram soluções inteligentes para participar dos jogos. Muitos tinham até dois bebês sob custódia, encantados por poder segura-los, até alimentar. A excelência dos atendentes do Casaredo se fez visível durante os jogos. Agiam em silêncio, demonstravam procedimentos. Os socorros eram duplicados de imediato. A maioria dos participantes se mostrou eficiente para conter choros, risos nervosos, volta ao leito quando necessário, atender a dificuldades respiratórias, corrigir posturas, aliviar as articulações de quem sentiu dor. Os papéis se invertiam com eficácia, cuidados se tornavam cuidadores. As mães com bebês aceitaram bem o desafio de deixar seus bebês sob outros cuidados, permaneceram de pé, alongaram o corpo e rodaram. Nos intervalos entre uma ciranda e outra, Wong Lam e William, fortaleciam o Lian Gong e os exercícios respiratórios. Aos poucos, surgiam no cenário cestos para os bebês – todos receberam, ao chegarem ao hospital colônia, pulseiras de identificação -, mamadeiras, bancos para amamentação, tatames, copos com água. Todos os participantes que precisaram ir ao banheiro, foram instruídos no atendimento a pelo menos um paciente do hospital em suas necessidades primárias. Somente um socorro médico foi requisitado no período, por pressão arterial baixa. A manhã fluiu entre risos, choro e atenção. Em vários momentos, os grupos foram orientados a anotar os acontecimentos vividos, a trocar ideias a respeito, enquanto desfrutavam de petiscos. Receberam material para o trabalho. Assim, foi lançada a pedra de toque para compreensão daquele encontro. Durante as cirandas, conduzidas pelo enfermeiro Gilmar, o público cantou músicas portuguesas, outras de várias regiões do mundo, aprendeu alguns passos e ritmos. Todos os participantes foram incluídos, instruídos, pacificados.
A doutora Dung Hanh, já no final da manhã, caminhou entre os círculos, feito borboleta com sinos nas asas, modificou totalmente a atmosfera. Ela parava vez ou outra, diante de uma mulher, saudava a dama à maneira tradicional de sua região. Tirava do bolso lateral de seu traje um par de tacinhas de porcelana e oferecia à participante. A doutora cantou o amor materno. Abordou a questão, a ver se era mito ou realidade este tipo de afeição. Sempre a tocar as tacinhas, logo obteve o efeito desejado. Aquela que recebera o instrumento, passava a responder as sequencias percutidas quase à exatidão. O som lembrava garras de caranguejo a tiritar no mangue. Uma espécie de despertamento se verificou no salão.
Houve alguns minutos para partilhas da maternidade entre as rodas, acalantos soavam lá e cá. Fazia parte do exercício falar o menos possível, o mais suave e pequeno, aos segredos. Algum alarido veio, pareciam calopsitas a arrulhar, um ou outro pássaro mais grave entre elas. Várias pessoas foram convidadas a tomar notas, a gravar trechos de conversas e cantares. O celular era benção.
O menino Júlio trabalhou entre os participantes, fez desenhos de perfis. O senhor J.G. fez o mesmo, tranquilo em seu leito, retratou gente em círculo. Um clarinete se fez escutar, entre divertido e introspectivo, no roseiral do Casaredo. Em dado momento, escutou-se a melodia Lembra-te sempre de mim.
Os participantes passaram a atividades em pequenos grupos, fora do salão. Uma das estações se deu na cozinha. Madame aceitou de bom grado dividir os afazeres com três pessoas que nunca vira. As instruções que ela dava, através do gesto, eram respeitosamente acatadas pelos ajudantes. Sua presença, sincera, tinha um encanto peculiar, acolhia e intrigava. O bacalhau à moda fez muito sucesso, foi servido a mais de quarenta pessoas. Outros pratos, orientados por Catarina e Josefine, cada uma auxiliada por três participantes, também agradaram aos convivas. Gaspare tocou seu violão durante a confecção da refeição, angariou silêncio e concentração para o ambiente. Após a refeição, a sesta aconteceu sob as árvores, nos jardins. Outros jogos lúdicos vieram e o afeto tomou conta do lugar.
Loto cantou também ao final da tarde, vestida em traje de seda clara, bordado com sóis e flores de lotus, na cabeça uma tiara de seu povo, branca, com motivos celestes. Sobre um tablado, que lhe permitia enxergar todos os círculos, Loto interpretou duas narrativas de guerra. Casos de mulheres do Vietnã, Camboja e regiões adjacentes, sob jugo ensandecido. Ao final da performance, ela tomou de quatro tacinhas de chá e as fez soar entre os dedos das mãos. O tilintar delicado hipnotizou a assistência. As demais porcelanas, entregues antes nas rodas, começaram a percutir também. Havia pandereteiras entre as mulheres, que empunharam seus adufes e fizeram contracanto. Dois convidados subiram ao tablado. Um deles, Gaspare, tomou de um instrumento de duas cordas, conhecido como lua. O outro, Alev, o homem invisível, usou um kalangu, instrumento de percussão com membrana dos dois lados, tracionado por tiras ao redor do vaso, este à maneira de ampulheta. A poesia da canção vietnamita descrevia paisagens, evocava fraternidade. A tradução aparecia em um ciclorama disposto ao fundo do salão. Foram doses de ternura, prenúncio de cura para os que se dispunham a tal. O enfermeiro Gilmar promoveu a coda, um forró de pé de serra para selar os corações.
A ancianidade é gosto difícil de fruir na roda da vida, todos sabiam. Por mais bonitos e simpáticos, por melhor que tenham se portado, a ninar crianças, conversar, contar, cozinhar, cantar canções seculares, valsar, sorrir, os participantes não deixaram de olhar os idosos com um misto de dor, pena e repulsa, atitude indisfarçável. Os velhos que podiam perceber o fenômeno, miravam os novos entre saudosos e aliviados. Já haviam atravessado as águas dos tais melhores dias. Quando perguntados, se queriam a juventude novamente, aqueles com um pouco de consciência diziam prontamente não. Outros, como Madame, que traziam a culpa atada à cintura, olhavam pensativos para seus interlocutores. Uma nostalgia, efêmera, Mamã a guardou para si. Pudesse retroceder, reescreveria a história de José, de um jeito a deixa-lo livre.
Madame, ainda no calor da cozinha, talvez para garantir o próprio equilíbrio, afastou-se engenhosamente, aproveitando-se da capa dos aprendizes, que colocavam as travessas no forno. Foi refugiar-se na Capela Rosália, sob luz azul. Lá, retirou do bolso os amigos, caderno de espiral laranja e lápis, e voltou ao final da quarentena. Obedecera ao que lhe pediram para fazer, na maior parte das atividades, até o almoço. O bom comportamento garantiu que Matilde ou Catarina não a viriam repatriar ou obrigar a manter-se com o grupo. Mamã teria gostado de ver Dung Hanh vestida de luar. O enfermeiro Manoel noticiou a Maria o paradeira da senhora, prontificou-se a estar com ela, pois também ele carecia de pausa. Madame, satisfeita com os novos ares, recomeçou a escrever.
Comentários
Postar um comentário