Hospital Casaredo 84
O caderno de espiral laranja
Ao observar aqueles três pacientes que hibernavam no Ambulatório, Madame percebeu que a vida tinha um valor inestimável. Agradeceu, pela oportunidade de testemunhar o cuidado e também por saber, de alguma forma, cuidar-se. No bastidor, separado por uma cortina, agitava-se a huli jing, em pesadelos inquietantes, vez ou outra se escutava um gemido. Tão moça e tão desesperançada. O enfermeiro Manoel era o mais tranquilo do grupo, despertou por instantes, sorriu ao se sentir velado e voltou ao repouso necessário.
Para Madame, escrever era lapidar jornadas. Seguiu o caminhar da dama preta do doce de marmelo. Uma caixa de madeira quadrada, pequena, foi posta ao lado da rede onde descansava José Gaetano. A iguaria, seguramente, chamaria a atenção do bruto. Também vieram uma cesta com pães de alecrim, um canivete, uma botija de água fresca. A dona abaixou-se, seios fartos com cheiro de rosa mosqueta, tirou uma mexa de cabelo dos olhos do comandante. Ele ressonava, pacificado. A mulher pensou em aninhar-se naquela rede, contudo Maden estava desperto e, com este, nada havia para querer. O verso voa em asa delta, cantou mais tarde José. As rimas iam-se desenhando enquanto ele espiava, fingia dormir. Buscava um som que casasse com doce de marmelo. A rapsódia tomou forma. Rubrica da esperança. Cura do olho fratricida, pousada nas meias verdes solitárias, à murada da gávea. Dá, Xeno[1], marmelo aos aflitos.
Madame passeou sua cadeira por todos os recantos internos do hospital, na madrugada que sucedeu ao festim. Com a volta de Manoel, um ciclo de sonhos peculiares a visitou e, por isso, era melhor arriscar-se e rondar, afugentar febres. O turno da enfermeira Matilde coincidiria com o almoço, Catarina viria em socorro primeiro. Joana conhecia-lhe as aflições, a deixava mover-se e torcia por ela. Recuperar a consciência, ou alguns movimentos, exigia excursões detalhadas, senhorear-se daquele mundo onde se encontrava. A cada parada de Madame, a devida anotação.
Mamã ganhou um caderno novo, com espirais laranja a segurar as páginas. Quatro gaivotas a rumar para o sul. Três lençóis desfraldados pelo vento. Os cabelos de fogo recém lavados, duas mechas em especial. Um beijo demorado, flagrado atrás de uma árvore. Mamã convivia demais com os apliques para cachos nos últimos tempos. Um prato de aveia. Um comprimido extra, duas ampolas de metadona escondidas em um canteiro com três rosas, tão de propósito ali deixadas, querendo ser descobertas. Um rastro de cauda de raposa, muito antigo, que rumava por quatro caminhos. Mamã ganhou cinco amoras de uma menina que passava. Então não quis mais brincar de contar coisas, quedou-se no primeiro piso do hospital, o tempo necessário para lembrar das gentes que conhecia ali. Quatro novos moradores haviam chegado, outros haviam mudado de quarto. Baixas, cinco. A senhora não recordava quem eram.
Virgen de Conciliación
Conciliadora dos tristes
Conciliai a minha alma
Quando for soar o sino
Vibre a doce melodia
Que te faz ai este filho
Virgen de Conciliación
Conciliadora dos tristes
Vai levar esta saudade
Que traigo, ai, em meu peito
Um homem em pé sobre o leito. Madame se lembrava dele, tinha por aquela figura um calor no peito que incomodava. Uma lágrima. Por que estava, o menino Júlio, a chorar? Uma comadre. Alguém precisou se aliviar no lençol. Uma profunda tristeza. Nojo. Uma gaivota no parapeito. Duas asas livres. A que preço? Uma porção de gravuras coloridas no corredor, desenhadas pelo senhor J.G. e fotografadas por Loto. Mesmo em sabendo que as contas se perdiam, e o terapeuta Blackwood lhe perguntaria o que cada gravura representava e quantas havia e isso era informação em excesso, Madame seguiu viagem, não sem antes testemunhar o pai bailaor a acolher seu menino como um bebê e conforta-lo em abraço marítimo.
Virgen de Conciliación
Conciliadora dos tristes
Dá-lhe sustento e conforto
À minha mãe um alento
Um casaco púrpura, pendurado à porta do armário. Mamã não se lembrava quem deixara a veste ali. Fechou a porta com cuidado, como a uma lápide. Uma boneca de trapinhos sob o leito. Uma menina que dormia, abraçada ao Santur. Qual era mesmo o nome da criança? Uma fatia de sol. Um azulejo com uma história inteira de navegar.
Virgen de Conciliación
Conciliadora dos tristes
Conciliai a minha alma
Diz-lhe, ai, que eu um dia volto
A fronha manchada de sangue. Quando lhe caíra o dente? As meias de lã verde oliva. Há quanto tempo não abria aquela gaveta? O esboço de seu rosto de moça. Quem o desenhara? Quem é esta pessoa sentada na cadeira de rodas diante do espelho? Como chegara até a porta? A marolinha, ali na entrada da casa, alcançaria o degrau? Manoel, já refeito, estava ao seu lado. Ainda fraco, mais magro que o normal. Madame chorou. Ela sabia quem era aquele rapaz, seu amado, o homem da gruta. Ela sabia que jamais seria traída. Jamais, palavra dura.
Diz-lhe, o seu amor eu levo, embrulhado no meu pranto[2]
Foi depois de uma récita, na sala de recreação do Casaredo. A experiência não fez bem a Madame. Seus sentidos não deram conta da dramaturgia que viera, em visita ao hospital. Mesmo atônita, Mamã pode contar no caderno de espiral laranja, não olhei a que horas me deitei. Acho que foi pouco antes das vinte e duas. Quem me cuidou, igualmente me escapa. Alev, o homem invisível, creio. Pus a cabeça ao travesseiro daquele jeito, sem responder direito sobre nada, febril. Lembrei-me de pedir coragem e também para sonhar melhor. Desejo realizado. Sonhei com o horizonte sobre o mar, o mais lindo que já vi, como se eu tivesse nas mãos uma câmera, que me desse girar trezentos e sessenta graus, lentamente. Espetacular visão, indescritível. Dentro do sonho, a experiência era real. Um voo ascendente suave, calmo. Eu me dizia estou morrendo, que lindo morrer assim. Tive um pouco de receio. Então voltei à Terra outra vez. Meia noite e meia, despertei com a risada fatídica. Não consigo liberar este som e preciso, vou conviver com ele enquanto estivermos aqui, a senhora Leocádia e eu. Até o dia do juízo. À noite, o som da risada é como os vadios que assombram o vale das abantesmas. Dá vergonha, pois se trata de risada de mãe, o que me deixa ainda mais invocada, enojada. Que não me julguem, todos conhecem o tipo de mãe que fui. Toca direto o meu estômago a tal algaravia. Tomei do caderno de espiral laranja, para dar acabamentos a algum pedaço esfarelado da vida de José. Deparei-me com a minha solidão. Lembrei-me de uma récita em que havia crianças, muitas. Deixadas ao léo, sem cuidado dos pais, mesmo em eles estando ao lado delas. Algumas subiram à carroça mambembe e quase a lincharam. Juntas as crianças, que não excediam os cinco anos, adquiriram força para balançar a estrutura frágil que servia de piso. Bateram os pés no estrado, em tropel alucinado. A récita falava de filhos pequenos. Representava coisas cotidianas como lavar, trocar, dar amor, o peito, a papa, ninar. Lembro de que distribuí várias chineladas pela praça, não nas crianças, nos cuidadores delas. Gente estúpida. O tipo de povo que se reúne em torno de uma carroça, cheia de tranqueiras e poesia. Quebrou-se um alaúde e o rosto de José me vem neste instante, a segurar o instrumento destroçado, como a um filho morto. Coitado del’.
Madame, em não sabendo que rumo dar à prosa, tergiversou. Era o choque entre real e imaginário, ou entre individual e coletivo. Entre racional e irracional, ou a dualidade perniciosa. A doença no tórax e o acalanto. A destruição da Arte, dentro do círculo sagrado, diante de adultos tolos e crianças insanas. Os artistas. Que dizer? Se permitissem mais, se o apelo da atriz fosse ignorado, se não viesse o marujo para conter pequeninos, para pedir, cínico, que eles fossem para perto dos pais, o cenário teria vindo abaixo. Os pais, que fazer, além de lhes aplicar umas boas tamancadas? Nada de magia de teatro, nada de magnetismo, nada de belo no cantar, nada de remédio, paliativo, placebo. A fraude desfraldada. O que dizer, fazer a respeito? Por que tanta dor? Melancolia? Por que estar no vórtice da mentira? Não há confronto com ela, há simpatia, entendimento. Quero chamar-te irmã. Mentira, tu és minha irmã.
Ao mar se associa fibra, se corrige rota, se acrescenta tronco, se abraça um filete de rio, e beira, areia, brisa, sol, chuvisqueiro, olhos, farol. Ao mar se estende a vela, a luz de um dia, Poseidon, crepúsculo, vestido de moça, água viva, empreendimentos, dejetos humanos, uma folha branca e tinteiro. Ao mar se lança o fôlego, a letra, um verso emoldurado sobre alforria, pianos, sereias, episódios longínquos de naus, cantos de baleias, barcarolas, espelhos, tritões, pentes, perfumes, palmas e canoas azuis, nossas senhoras dos navegantes, janainas, plásticos errantes, amores nus sobre as rochas quebradeiras, tambores, latas de comida, esqueletos de naufrágio, plataformas, Contos de Hofmann, lixões móveis, usinas nucleares, triângulos e falhas, magma, um céu por cima, a acender cruzeiros. Ao mar se abre um riso, uma rede, vinte mil léguas, bandeiras do Tejo, suspiro, sussurro, tesouro, um ai, correntes quentes e frias, um voo de gaivota, uma corrida nas dunas, um chapéu a bailar, um par de óculos, a parte de cima de um biquini, uma renda branca, uma garrafa vazia, outra com bilhete para Donis, homem ao mar, luneta, lançar âncora, homem ao mar, turó rôoooooo tu tu tu rôoooooo tu tu tu turó rô tu tu rooooo.
Madame, com letra e alma incerta, seguiu a fazer um inventário dos moradores do Casaredo. Recordou, primeiro, o nome de cada um. Demorou-se no desenho de cada sílaba, sopesou, respirou, deglutiu. Depois, revisou os fatos que conhecia, uma particularidade, um detalhe, o contexto, o vínculo que lhes cabia. Cada personagem poderia gerar um conto. Ponderou. Velhos marujos não fazem projetos. Iniciou o primeiro, a falar das mulheres mortas.
Lá nas ermidas carcomidas pelo tempo, volitivas, assombram as faustas, enigmáticas. Nunca dormem, apaixonadas e à volta das flores, distraídas. Têm fome, muitos cabelos, em nada tocam com seus pés. Figuras meio aladas, mais descobertas que tapadas. Augustas, Medeias, Circes, Dianas, Helenas. Uróboros a lhes revelar as espáduas. Salinas, ácidas, agridoces, amaras, insípidas, a orbitar pátios abandonados.
A risada ecoou no piso de cima, quebrou-se o encanto. Madame atirou longe o caderno, que acertou o peito de Matilde. A moça vinha do beijo mais demorado que trocara, experimentava o sabor de creme de limão nos lábios. O caderno só fez escorrer e desfolhar sobre o piso. Foi esquecido ao canto, ao passo que a Matilde valsante foi abraçar Madame, coisa incomum. Ficou assim por alguns segundos, a ninar e resmungar. A senhora recebeu aquela fidalguia sem reclamar. Ao final do gesto a moça sorriu, o cabelo de fogo cobriu o rosto de Madame e ela escutou se quiseres, desce e vá apanhar o teu caderno. Catarina, logo atrás, caderno na mão. Não havia o que revidar. Mamã tomou as folhas entre os braços. Cochilou.
Bem mais tarde, quando se sentiu melhor, Madame tornou a contar que, após algum tempo de dormir em rede, ao ar livre, José moveu o braço ferido com desenvoltura. Até empunhar a vassoura o marujo ensaiou. Varreu o pátio à gentil dama preta, a que lhe acolheu e ao seu grumete. O comandante ganhou um quilo, a comida farta e saborosa fazia sonhar. Ofereceu à mulher um saquinho de moedas que muito a contentou. Os marinheiros foram ficando, privaram-se de ocupar um quarto. O tempo estava quente, seco, ambos decidiram permanecer do lado de fora da hospedaria simples. Enquanto se exercitava, José reencontrou Donis à memória, a tudo o que não se cumpriu naquele relacionamento, onde nada havia que se cumprir. Moço tão moço, tão ávido das águas. José custava a tomar fôlego quando o olhava, miragem nebulosa. Impossível esquecer-lhe a cara jovial e risonha. Nas últimas conversas, no entanto, um tanto mais do próprio íntimo exposto, o sorriso e a luz sumiram, como encantados. José acreditava que isso era amadurecer. A humilhação deixara de dar os ares da graça, o que o punha mais sereno. Ao cerrar as pálpebras, lá vinham os alalás, longas declamações sem texto a dizer faróis. Já não doíam muito. Onde estaria o Alois tangível?
O coração do bucaneiro amainou, ao ouvir os rezos de Maden no por do sol. Sentou-se com ele no toco emborcado do quintal e rezou, ele também. Se a petição que José enviara ao chefe da Armada Santista fosse aceita, daria a Maden a insígnia de mestre. Quando todos adormeceram na pousada, José tomou notas em seu diário. Sob as estrelas, o lápis corria as páginas, sem borrões. Depois tocou o santur, plectro sobre as cordas, as estrelas responderam. A dama preta, a do tacho de marmelada, acordou para escutar, sem deixar o catre. Algumas cantigas foram anotadas naquela pausa de Santos, Brasil, postas em pauta em noite de super lua. Ou em qualquer noite com sabor de marmelo cozido. Houve também o licor de cassis, comprado ao porto. José a cismar, como se em companhia de Donis. Valia cantar para o mundo, enquanto a ressaca tardava. O grumete ao seu lado, ressonante, era um presente, exigia agradecimento.
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