Hospital Casaredo 79
Sessão de cromoterapia
Tomada por estranho furor, diante do espelho de entrada do Hospital Casaredo, Madame, a ralhar consigo, escrevia sobre o comandante de suas histórias. José Gaetano cruzou com uma portuguesa no cais da Cidade do Porto, a Maria Beatriz. Maria era musicista, cantava com suavidade, bonito repertório de canções tradicionais. Usava um fole pequeno como acompanhamento. Viajava, na ocasião, em tournée para o Brasil, ato bastante inusitado para uma mulher só. Para não dizer desacompanhada, estava lá a concertina, a preceder seus passos e criar uma aura circense à sua volta. José Gaetano não lhe pode dar atenção especial, trocou com ela meia dúzia de amenidades, talvez porque a rapariga não figurava na lista de passageiros da Sor, quem sabe se haveria outra ocasião para se conhecerem melhor. Uma tensão se criou, gratuita. O marujo cuidava do embarque de sementes, estava comandante de bárbaros e nem sabia. Ficou no ar aquela impressão de que o mar não daria conta dos dois músicos em um mesmo barco. Não era nada disso. Maria Beatriz não quis escutar as canções de José Gaetano, teria gostado. Nessa época, José ainda não reencontrara Alois Donis, oito anos haviam se passado, desde a vez em que o homem lhe deu as costas e partiu. Maria, ao mencionar que estivera com o Capitão-Mor há poucos dias, causou comoção. A espevitada rapariga era ledora de corações partidos, ou executava uma vingancinha com o primeiro que apareceu, fraco diante dela. José guardou, de si para si, a modinha que a Maria Beatriz cantou ao embarcar. A rosa, depois de seca, foi se queixar ao jardim. O jardineiro lhe disse, tudo que nasce tem fim[1]. A continuação do tema, unguento para meiga verdade, contava do destino de uma roseira enxertada, a dar rosas, tantas, tantas e também dar rosas brancas, e dar rosas encarnadas. Maria Beatriz acenou com o xaile para o comandante, via-se em seu semblante um pedido de perdão. Subiu a uma barqueta da Encantada ainda a cantar, agora a ceifeira, ceifeira, linda ceifeira[2]. Muito tempo singrou, até alcançar a nau, e José a escutar, do cais, andorinha nova já caiu ao laço.[3] Pesaroso, sem ter como remediar sua dor, ofereceu estes temas todos às suas mulheres, as do harém, ao som do santur, quando já ia, ele também, enfrentar a arrebentação, para tomar a Sor em seus braços.
As histórias são assim, uma hora estamos nelas, noutra saímos delas, voluntariamente ou de arrasto. Significa que assim existimos. As rosas secam e outras nascem, em estação vindoura. Vontade de velejar, Madame sempre teve. Parecia, contudo, colada ao mar português, para o ver de longe. Chorou diante de sua imagem no espelho, com dó de si.
Aquele dia, o da sessão com o terapeuta William Blackwood, significou muito para Madame. Ela conhecia o esforço necessário para que os enfermeiros cuidassem dela, tão queridos, todos eram. Sopesava a força das comidas que ela ainda preparava, a troca, a gentilidade, fazia muito sentido. Seus cadernos eram parte de sua jornada e legado de gratidão. Satisfez-se, do quanto estimava aquela gente, sem exceção, todos com seus ais e lindezas. Madame se encontrava no Casaredo e não a vagar só, era uma dádiva.
O espelho da entrada fazia as vezes de cúmplice, guardião dos segredos do caderno. Naquele mesmo encontro entre a Maria Beatriz e o comandante, Madame interpôs o espectro da senhora Marscha, que chegara de manso à sessão de luz, assim que William deixou a sala. O ambiente transformou-se em rosa púrpura, um cheiro penetrante de lavanda. Madame deixou-a deitar-se por sobre seu corpo. Estava nua e vinha aquecer-lhe a alma. Um líquido desconhecido verteu, direto na medula. A senhora viu mais coisas, as quais se manteriam no porão de sua mente por mais algum tempo, até poderem ser anunciadas.
Foi o enfermeiro Javier quem levou Madame da sala de cromoterapia. Encontrou-a em transe, a respirar profundamente, mergulhada numa energia que lembrava tule, de cor índigo. Com cuidado, o rapaz a tomou nos braços, transferindo-a para a cadeira de rodas. Blackwood voltava naquele instante, acompanhado do senhor da Nossa Senhora, a caminhar muito devagar. O velhinho, marcado por algum surto, não deu pela presença de Madame, tampouco ela se deu conta de quem entrava. O espectro, ainda presente, teve tempo de dizer adeus a ela. Javier, ciente da gravidade do processo terapêutico, protegeu a paciente com um lençol e a guiou até o elevador. Ficou parado com ela um instante, a olhar o céu, na escuta. Sentiu a mão trêmula de Madame a segurar seu punho, ela chorava. Uma pressão um pouco mais forte, sinal para seguirem, ela desejava aliviar-se, o que era bom. Providências tomadas no sanitário, ambos combinaram ir até a praia, embora a noite já se fizesse ver. O moço, inspirado, se pôs a compor uma coreografia diante de Madame. Logo, um manto de estrelas, azul esverdeado com toques de rosa, desceu sobre a Terra. O menino Júlio, que pintava no jardim quando o pai e Madame cruzaram o portão, captava na tela o colorido do entorno, o projeto era retratar Javier a bailar. Às vezes, os encontros sugerem pegar carona em cauda de meteoritos. Javier, depois de marcar duas sequências para uma soleá, estirou-se na areia ao lado da senhora. O filho, a alguma distância, mergulhado nas cores, acendeu uma lanterna afivelada na testa. A noite desceu, fria.
O espelho de Madame, ela algo enciumada, revelou que a companhia de um amante inventado atazana, faz contar uma página inteira de voo, ou de bobagem, sem tirar os pés do chão. É possível ir a Paris, depois a El Salvador, então a uma galáxia distante, embalados, todos os personagens, em sorriso folgazão, temperatura na casa dos quinze graus, a aurora distante vários quarteirões do seu ofício. Assim, a experiência onírica, a conversa com William, a imersão nas luzes, Marscha, o bailado de Javier, viraram azul cobalto. Acabou que Madame estava triste. Javier, entretido com as estrelas, sonhava cachos de acácia, merecia o breve repouso. Era esperar.
Os cães, Filó e Santur, que disputavam um osso a alguns metros do menino Júlio, talvez estivessem no paraíso naquele início de noite. Os passos do flamenco, ilustração de feitos heroicos, talvez conclamassem calçadas mal feitas, intransitáveis, vias públicas brilhantes de tão pintadas, cujo asfalto se desfaz na mesma hora em que um auto se lhe atravessa. A imagem, utilizada por Madame para descrever o que sentia, sugeriu alguém que aperta botões em outubro e decide o futuro da precária jornada em março, uma afirmação do período vivido em interdição voluntária. Quanto navegou, pelas ruas que não mais veria.
O pequeno pintor trazia nas mãos a placidez dos domingos, abria as tintas e era Alois, sua casaca púrpura. Ou José, e a porta que bateu. Antária, as saias arrepanhadas nas coxas. Deolinda e os azedumes. O leite de peito. Lisboa voltou, naquele início de noite diante do mar, canora, reacendeu as saudades da Mouraria, o fado de Camané, as janelas da Alfama, ah, Carlos do Carmo. Tudo, uma questão de responsabilidade, de compleição afetiva. Rossio. A queima da roda do auto contra o piche nada tem a ver com o peso dos coches. Jerônimos. Quem é que passa ali adiante e acena com o lenço? O Tejo. Qual canção ele assovia? Endereçada a qual transeunte? Ah, como Madame quereria uma delas em seu ouvido, alguém a dizer, com todas as letras, é para ti que ofereço o meu gozo. Madame pensou eu te ofereço amor, mas tal oferecer não conserta o telhado. Livraria Bertrand Chiado. Uma bela casa lembrava tempos em que a vida adulta fazia sentido. Era o Esquina de Alfama? Adeus, adeus, adeus. Era de outro a história da moura chorosa que sumira, como que por encanto, adeus, adeus, adeus. Marscha, Marscha, o vento levou. Como acalmar a dor, de onde surgira? Madame esqueceu-se da canção. Se pudesse captar convenientemente as mensagens, acabava-se o engodo. Era engodo esse olhar as libélulas? Alucinação? Ou os mundos se intercambiam, o tempo para? Ah, a Augusta. A dor para. Como saber? Madame pensou desejos antigos, tão contidos, para perverter o pensar. A Feira da Ladra. Era o pensar, ou a mente cariada? Era algo sobre cumprimento do dever humano, cotidiano, coisas simples, em que a mente se comporta, aquieta, alcança sobriedade e deixa compor a refeição. Nada de arte, poesia ou caminhos tortuosos. Miradouro da Nossa Senhora do Monte. Quanto veio à Terra visitar, esta Senhora do céu? Andar pelas calçadas, quase nua, dormir pelas ruas, sem calefação. O frio corrompe. Escorrer pelas areias quando a noite chega, desarticular-se de cruz em cruz. Este o consolo, se tombasse, algum passante teria piedade, cobriria os restos com lusa prece e plantaria a cruz de gravetos. Se feliz ou infeliz, Madame vivera decor. Não aprendera a se comunicar com libélulas, só as via entreterem-se com o ar. As poucas nuvens desenham véus de noivas voláteis, abandonados ao azul petróleo das noites de verão. Lindo valsar, tramas de voal tão ralas, tão ralas, tão ralas, as roupas do varal português. A ideia de casar-se. De onde viera? Todas as mulheres desejam casar-se. Que bases havia para tal ideário? A mente, a mente perturbada, a mente casadoira, a mente que põe o casal adulto e jovem, de marzipan, sobre o bolo de três andares. O litoral, magnetizado, provocava em Madame mais dor, uma presença cúmplice de caravelas portuguesas. Farol de Santa Maria. O rio não define o limite entre viver e morrer, ele corre. O morrer é com o mar. Cala-te, Maria Beatriz, cala-te.
O humano, para a alma, está o país em que sorri. Portugal, meu tesouro, eu não posso de ti me esquecer[4]. A voz veio de uma janela malaguenha, a cerca de quatrocentos quilômetros de Faro, Huelva e Sevilha na rota. A voz, calada há tanto tempo, saúda o guardião das marés, que sempre expulsou de suas águas organismos rebeldes. Não haveria de perder-se, mais este corpo velho, enregelado. Que anjo tua mãe te segredou, que tu vias ao nascer, Madame? De onde veio a certeza da mãe não simpatizar contigo? O anjo que canta eu te bendigo, noite fria, porque tuas asas gélidas desenham formas na janela? Eu te bendigo, noite fria, posto que o rumor rumoreja, plasma e membraneja, e se pode respirar. Um hálito quente faz contato, um gato, uma casaca verde oliva, o ruído do equador. Eu te bendigo, ó noite fria, que navega de faluas brancas. Mais um brilho de sol vem, sem verso, em oposição celeste, e eu ainda estarei aqui, bem o sei. Mais um ponto na história breve, mais ciúmes. Alois Donis, casaca cor púrpura, reapareceu. Marolinha, quem voltou à mente de Madame foi Santo Olivairas. Por onde andaria? Da última vez que soube, ele fizera outro filho. Passava das dezenove horas, Júlio já retornara ao ateliê e levara os cães. A enfermeira chefe Maria, certamente, repreenderia Javier pelo atraso.
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