Hospital Casaredo 78



Pirilampos


Quando Madame voltou do transe, aquele, cheio de pirilampos luminescentes, que ela viveu no banho da senhora Perséfone, estava no refeitório, diante de um pão pequenino e pasta de amendoim, que ela fizera no dia anterior. O leite, extraído da oleaginosa, encantara a todos. Olhou em derredor e sorriu. Lá estava o enfermeiro Alev, atlético, vívido, disfarçado atrás de uma samambaia. Ele mostrou-se como fauno, gestos miúdos, a percutir uma peneira, trazia consigo bem estar. Deixou o objeto sobre a mesa e tocou o rosto da senhora com as duas mãos. Ninguém sabia por que o amor era bonito. 

 

 “E foi que de doença crua e feia,/A mais que eu nunca vi, desampararam/Muitos a vida, e em terra estranha e alheia/Os ossos para sempre sepultaram./Quem haverá que sem o ver o creia?/Que tão disformemente ali lhe incharam/As gengivas na boca, que crecia/A carne e juntamente apodrecia.”/Os Lusíadas (Canto V).    

 

Quarenta dias sem registos no quadro de giz. Não que alguém aguardasse notícias de passamentos, todos devem lembrar-se de que o artista retratava obituários. O ambiente andava atento a coisas mundanas, e parece que certa ordem pedia caos. Os enfermeiros se revezavam nos cuidados com o senhor J.G. Um clarinete chorava no jardim.


As três alcoviteiras do Hospital Casaredo deram de se estapear no dormitório, eis o deus-nos-acuda. Seus costumes espalhafatosos eram já conhecidos dos atendentes, que pilhavam delas. O incômodo da senhora Perséfone ocorria também quando ela era recolhida ao leito, vinda do banho. Os colapsos epileptoides contaminavam o ambiente, causando tensão acima da suportável. 


A deusa de ébano, Joana, desbravadora dos canais sutis, causava rumores na academia. Apenas na Assistência encontrou paz para trabalhar, visto que o sanatório criara o espaço para anular certas aberrações. No dormitório, em meio à balbúrdia, a enfermeira conversou com o ente invisível que assediava Perséfone, causa daqueles episódios difíceis de diagnosticar. Não, nem tudo é fruto da imaginação, apenas agravado por ela. 


O doutor Itaú, no dia anterior, levara a paciente ao mar, na tentativa de descarregar aqueles impulsos, que ele acreditava, libidinosos. Os surtos se tornaram ainda mais intensos após o tratamento. Faltava pouco para o coração de Perséfone rebentar. Joana pediu ajuda aos demais médicos, para que se evitasse o passamento a qualquer custo. Algo que só ela e Madame viam, porém todos sentiam, precisava ser apaziguado, antes do gozo final. A medicação, fenobarbital, não fazia efeito na paciente. 


O que mais afligia as companheiras de dormitório eram os gemidos que antecediam ao clímax do surto. Perséfone foi transferida para a UTI, em estado de penúria. Não havia pacientes lá. A mudança foi benéfica. Por algumas horas ela abandonou-se, letárgica. Um passamento nessas condições era triste e incerto, disso somente Joana tinha consciência. O apoio dos médicos foi incondicional. 


De volta ao dormitório, Agnela chefiava as contendas. Os tapas eram ardidos, acertavam até os enfermeiros mais fortes. Alev, o mais tolerante entre os oficiais, considerou desferir mangueira de água gelada pelo perímetro. Os cães, que circulavam contentes pelos corredores, sumiram. 


O doutor Wong Lam pediu calma e concentração. Ele sim, pode falar com as mulheres, de mente para mente. Soava, no íntimo delas, como um instrumento musical chinês, o sheng. Pediu ordem, resignação e compaixão. Pelos dias em que Perséfone esteve afastada, este tratamento surtiu algum efeito.


Madame percebeu o ser escuro sem sobressalto. Ela estava só no jardim, o caderno sobre o colo, fechado. Aquele ébano de ar saiu de dentro da capa do diário. Era imenso, um tanto ovalado e estava nu. Quase humilde, o ogro perguntou pela amiga que ele cortejava. Tímida, Madame explicou que ela morria, sob jugo impiedoso de outros sujeitos, ainda mais escuros. Que, para salvar Perséfone, o ogro precisava partir. Que ele tinha mais chances de enfrentar os verdugos que a subjugavam no momento. Caso se aproximasse da mulher, ela explodiria por dentro, seria lançada a poços distantes, em muito sofrimento. Que eles não se veriam mais, por séculos. Escolha difícil. Apesar da visível ignorância, o ogro entendeu a situação. Voltou para as páginas do caderno. Daquele momento, e por mais três dias, Madame ouviu percussão pesada e persistente, que convidava a combate. Teve febre alta no período e foi tratada somente por Joana. No quarto dia, assim que o sol nasceu, a calma aparente voltou. O senhor J.G. registou cena de batalha sangrenta em sua lousa. Perto de sua assinatura, um desenho peculiar, de uma mulher sobre outra, nuas ambas, deitadas em um charco avermelhado. A de cima, a que protegia, tinha um envoltório róseo.


Os escritos de Madame foram reticentes no período. A página narrava a firmeza de um pai. Sua experiência e visão. O joelho do avô, a candura da avó, os brincos de criança, uma caixa de areia, livros e lápis-de-cor. Depois, a chita rodada, a fita no cabelo, a boneca de porcelana que senta na cama e fica. Depois o coração, que carece visita. E seria tão bom dominar os sobressaltos, as ilusões, desejos, ah, tais desejos de rilhar os dentes. Os instintos de posse, o que dizer deles. A cobiça. As inseguranças, tudo se mistura e faz vulcão e gênero. Tudo parece árido depois de tanta pena e tanta arenga. Cantar dá doçura. A sabedoria anuncia dias claros. Ainda a servidão, ainda um anseio estranho de ninho misturado a cheiro de turbilhão. As perguntas se amontoam, as páginas inúteis se empilham. A simpatia, conquista débil. Todos os passos, todas as propostas impudicas repousam. Madame escuta, por dentro, a sonata ao luar. Sente o caminho, que se faz em horizonte reto. Não há que temer, pouco falta. E sobre os presságios? Escuridão ou luz, escuridão e luz, tudo em complementação. No céu, resplendem a Lua e os anéis de Saturno. A felicidade, por ela, está na marola dourada do rio que salga o mar, que jamais é o mesmo. Uma dama em ébano pajeia, da porta, o mundo abissal. 


No meio do mar


José Gaetano deixava suas mulheres de dentro panfletarem. Ele as dispunha sentadas em almofadões, divãs, espreguiçadeiras e as polvilhava com chocolates, flores, livros de alcova. Dava-lhes pó de arroz e joias também, que sabia delas gostarem de brilhinhos.  E as observava de longe, sorvendo aquele arrulhar ininteligível. Todas as noites, o marujo  imaginava os pés das consortes, dentro de belos sapatos vermelhos. Vera caminhava, ondulava a saia floral ao longo da orla. Baile nas calçadas à portuguesa,  as de Faro. Ouvia sussurros, tira do meu corpo a mornidez. Outra voz dizia, sempre me doeram as mãos. O homem sustentava amarras, o leme, a força viril. Desejava abraçar. Uma voz velha segredou fiz voto de silêncio para proselitismos. Espero, nenhuma palavra se perca de mim. 


O comandante situava algumas de suas mulheres na cozinha, silenciosas estas, atenciosas com suas massas e temperos. Ele também as punha com as barrigas acostadas nos tanques, a bater lençóis muito brancos. Mulheres na horta, no paiol, no campo, a colher trigo e rosmaninho. As mulheres dos dosséis. E então era uma legião de rainhas, serviçais, preceptoras a falar muitas línguas, ensinar a gênese. Mulheres construtoras de naus ele nunca vira. A limpar tombadilho, só disfarçadas. A subir ao cesto, nenhuma. A traçar rotas, menos. A mirar os céus, papisas e uróboros, lindos, medonhos, insuposta visão. Um verdadeiro harém o galego guardava em seu íntimo. O que o chateava  era não saber se maltratara e desonrara alguma delas. Se estava certo em a Terra ser prisão, o homem de Vigo devia ter aprontado poucas e boas com elas, as suas doces senhoras, ocultas no caldo quente do seu meio abissal. Outra mulher de dentro, naquela mesma noite, suspirava na janela. 

 

Eram o Báltico e o Norte. Um jantar de muitos francos. O dia em que estrelas se curvaram. Naquele ano, a nevasca foi amena. Paz e música se enleavam. O dia de partir, asmo, na falta de palavra mais doce. Éramos, Alois e eu.

 

Madame olhava curiosa para o terapeuta. Era a primeira vez que se avistava com ele no consultório, luzes azuis e verdes a povoar o espaço. William Blackwood se sentara ao lado dela. A cadeira confortável envolvia o corpo, sustentava a coluna e tremia vez ou outra, como a avisar que não era hora de cochilo. Logo a senhora compreendeu que Blackwood queria conhecer seus meios de comunicação com os mundos. Ela não se opôs a contar o que sabia.  Bastava manter a conexão com alguém, ao invés de perder-se no mar inconstante das bobagens pensadas. Mais difícil era conter as emoções, faze-las coerentes. Certas raivas enegrecidas voltavam, à maneira das marés. Assim como tristezas, arrependimentos, culpas. As alegrias, pouca vez. Dava a impressão de que algumas ordens ficavam para depois e o hoje escorria, puxado pela embolia do caos. Não havia lugar para medo, vergonha. As mensagens, quase nunca eram confiáveis. Tal oscilação produzia cansaço e dores de cabeça, como se o todo se desligasse em espuma. Ou era autoproteção contra represamento e, mesmo, perda total da consciência. Madame falou de ninguém ser exceção, para nada, que todos poderiam se comunicar. Também, que nada exigia gravidade. As coisas eram das coisas e o estado de coisas a elas importava. Os humanos eram coisas miúdas. O problema era esse, se achar maior ou aquém. As dimensões eram muitas, as comunicações dependiam de qualidade da vibração. Cada ser humano parecia um grilo a saltar sem parar sobre as coisas, sem sorver, sem olhar. Como se todas as superfícies torrassem. Tal movimentação caótica dificultava credibilidade às notícias, seja lá de onde viessem. Por isso seria delicado divulgar resultados na dimensão em que se encontravam.

 

E então Madame contou que os pirilampos chegaram em sua vida logo que o grupo passou a residir no Casaredo. Estes seres nada diziam, apenas moviam o ar, auxiliavam a limpar, a respirar. Que a senhora Marscha apareceu logo que seu corpo se soltou sobre o catre, no dia de sua morte. Ela nada falou e ainda não fala. Não sabe quanto tempo ficará nesta dimensão. Enquanto for útil, pareceu. Não, com  gente de pele e osso, para Madame, era quase impossível conversar sem usar o verbo, todas as mentes possuíam boas telas protetoras e não abriam seus olhos. Caso não tivessem proteção os humanos, que ambos conheciam mais, correriam loucamente e provocariam estragos incalculáveis. O terapeuta agradeceu muito àquele encontro. Perguntou se Madame ficaria bem, a sessão terminara. Madame fechou os olhos, como quem assente. Assim que William se ausentou, a senhora tirou seu caderno do bolso e, apesar da pouca luminosidade, escreveu no ritmo das libélulas presentes.

 

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