Hospital Casaredo 77
A escrita d’um peregrino
Meu amigo, paz para ti, cheia de som, de luz, que a fúria seja sinônimo de dar de cara com uma ideia linda e poder realiza-la. É sexta-feira, oito de novembro deste ano. Quando sinto que há alguma coisa na área dos afetos – do que me toca, por isso sempre há, creio que a vida na Terra é justa, arcoirisada. Às vezes, fica muito vazio. Tenho trabalhado a chegada ao miolo da questão. Vou a um teatro imaginário, sentar-me ao lado da deusa, partilhar com ela a vitalidade e o encanto daquele espaço, em que tantos procuram homens, mulheres e seu contexto vital, seu entendimento de tudo. Não leio tanto quanto os atores, mas o suficiente para pisar a madeira gasta, tocar os veludos rotos e os fungos, as cordas, as miríades dos refletores e o cerne do drama. La deusa fez a mesma peça laureada por outra. É de repertório de espalhafato, como o são as óperas, portanto, tu estarias apta ao papel, Vera. É triste, não há fundos para comprar os direitos da obra, tampouco traquejo de agente. Ainda te peço, fujas, fujas o mais possa, dos sedutores. Em tempo nublado, fímbria de sol, espero que te decidas pela Vida, que saias do Casaredo Olival.
Silva, o porteiro, explicou-se a Alev, o homem invisível, que se mantinha calado. Embaraçado, o trabalhador olhava para baixo, um metro do chão. Por impulso, entregara a carta a Madame e não ao enfermeiro Gaspare, como de costume. Fora um senhor imponente que a trouxera, de forte presença moral, com a indicação explícita de quem a deveria receber.
Madame, terminado o ensaio do Mahler, ela encantada, precisou escrever. Veio-lhe José, inteiro. Que ele quisera oito esposas, como Henrique VIII. Não para destruí-las, mas para viver grandes ocasiões. De preferência, que todas estivessem juntas, na mesma mançarda, na mesma câmara, a se alimentar de ambrosia, licor e três olivas. Todas lindas, morenas e carnudas, cantoras, e seus saltérios, flautas, liras, gamba, viela, que soassem todo tempo. Jovens contadoras de histórias, que soubessem acariciar, pentear os cabelos com os dedos, besuntar com óleo de bétula, cavalgar suavemente, descer as mãos para os mistérios, subir para os relicários. Não era comum ao marujo ter fantasias de intercurso. Ele era enérgico com estas divagações, possuía forte senso moral. A tarde de calmaria, quadragésima, e mais não se contava, ia tão quente e pesada, que o devaneio permitiu aliviar os músculos ao menos. Não havia de comer, a água produzida da dessalinização tinha gosto indefinido, dava medo. Os versos, escritos durante a noite, tinham qualquer coisa, apesar de soarem ruins. Foram poupados do cesto, que ficava ao lado da bancada.
A palavra tem um gesto acalorado quando fala no encontro. Entre o neno e sua mãe, a palavra remete a outro senso. Quando junta neno e neno no brinquedo com seu pai, a palavra acolhe novo sinal. Quando o dia vai a meio e junta o coro a cantar, a palavra convida ao compromisso. Quando a voz da assembleia reza prece de louvor, a palavra envolve em diadema. Em ciranda medicina. Quando o mundo quer quebrar, a palavra atenua o rumo deletério. Quando a dor impele o naufrágio, a palavra firma. Um dia, quando os horizontes claros, o fundo do mar emitir o som, a palavra fará sentido para todos nós. A palavra é um dia de fogaréu. Logo a chuva virá, a trazer frescor. Dragões princesa de Rilke voejam a imaginação.
José recordou os olivais, seguiu a contar Madame. Que cheiro terão agora? A garoa traz, de alguma sorte, o rumor de voz serena, será a da mãe? É meu coração quieto, que adivinha o sentido de tudo, ao pé da Serra da Estrela. Beira, Beira. Que cheiro terão os olivais? A alma, trabalhada no sal, esqueceu. E as brumas de charcos distantes? Pois se moram olivais, poemares em flor, atascadeiros, jardins suspensos, Barragem de Varosa, longe, tão longe no meu pensar, nas peças de linho das minhas veias, nos sentimentos, como lembrar que cheiro terão os olivais? Tenho a roupa limpa, lavada e engomada a camisa, e a vida vai e vem verde oliva e exílio.
Foi com a idade de doze anos. José passara os últimos cinco a morar com uma avó, enquanto a mãe vivia um quadro de enfermidade rara. Esse foi o tempo de entender como os bichos morriam. E como o amor retirado ou não ofertado ou não compreendido cria uma câmara de aço para o peito. Se é preciso adivinhar amor, é posto que ele está escasso. Além do desejo constante de fazer muito mais que travessuras, tal exação não revelava a vingança em si, ou tentames, em favor das pessoas que sumiam, ou ataques a quem ainda tem as mães, casa, cama, aranhas na parede, escorpiões nos lençóis, pés de café gigantes, baratões do mato. Há que se pensar em algo pior que isso, diluído no sangue de José.
A voz que canta é autoamor. Salvo estava o róseo menino por este dom, com a sua fitinha pro chapéu, já é sabido. Idade ruim para a família cindir, um pouco mais cedo, aos oito anos. A jornada de José naufragaria por completo sem a voz. Estava em seus mapas passar por tal prova sozinho, e não adiantava arrancar os cabelos, bater no peito e perguntar o que vai ser de mim.
O corsário criança viveu, nessa época, um funeral. Ele estava em companhia de seus parentes de folguedo. Tratava-se de um gato que o avô envenenara, por motivos justos para ele. A brincadeira, de seriedade mais que religiosa, deixou marcas práticas em José. Se houvera um pouco mais de empenho, o marujo teria se tornado ao menos boticário. O sonho de José menino era tornar-se físico, curar a mãe.
A curiosidade pelo cadáver do animal beirou o fascínio. A visão das larvas tão brancas, aos milhares, a proliferar no interior do gato, deixou o marujo intrigado e um tanto enjoado. Não lhe tirou a coragem entretanto, e foi ele, sozinho, a escorrer o bicho para a abertura rasa na terra, com o auxilio de uma vara. A cova serviu, o felino não ficou mais ao relento. Cobrir o bicho com terra foi mais doloroso que o ver apodrecer.
Haveria, ainda, o dia da libertação dos cativos do grande viveiro do avô, razão pela qual o gato fora intoxicado. Foi isso o que rezaram os peraltas ao redor da cova. Este era o tipo de vingança conjeturada pelo bando, cuja chefia seria atribuída a José, e obteria apoio entre os parentes mirins. Teria sido um grande erro, mesmo condenação antecipada. Nessas horas é que é bom se contar com anjos tutores. Soltar um bando de passarinhos. Um engano que nenhum envolvido no brinquedo de coveiro teve tempo de cometer. O féretro do gato, somado ao esmagamento do espírito pela raiva, pela puberdade que já espraiava, trouxe ao peito titânico de José Gaetano um batuque ritmado. Uma espécie de galvanização. O cérebro deste menino entendeu que a dor da morte o ajudaria a auxiliar outros a morrerem. Ou, na pior das hipóteses, a superar o desejo secreto de matar-se.
O que José não sabia é que aprender exige exames regulares. Na escola do povoado o marujo, ao invés de letrar-se, cometeu vários delitos. Solidão, vergonha, seus sentimento primordiais. Autodestruição, possível intento, ilógico a um tórax blindado. Compras ilícitas na cooperativa, de balinhas, lápis, cadernos. Seu raciocínio, que não tinha de onde tirar dinheiro para saldar os compromissos, elaborou assinaturas falsas em bilhetes falsos. Resultado: gente inocente foi envolvida em suas picardias. Logo veio a deportação, ele taxado de mentiroso e caluniador. A fragata Lindaura zarparia para os Açores na manhã seguinte à decisão de por o neto para correr e o avô não hesitou em o embarcar.
Iniciou-se a missão do pajem, junto com mais ou menos sete desafortunados meninos. Esse desditoso desfecho da família era, na verdade, um mundo libertário que se descortinava para José, não se enganem. Era a alforria do rapaz, imprudente poder-se-ia dizer. Deste momento em diante, o mar tornar-se-ia em futuros promissores para o garoto, o clímax da dor ficou para trás. Até seu coração ficou lá, enterrado junto ao gato.
Vieram as ondas, os sabres, os livros, os desafios da honra, uma posição social estranha, junto aos companheiros de solidão. José escreveu uma vez para a mãe. Jamais soube se ela recebeu a carta. O rascunho ficou em seu caderno. Que posso te dizer, mãe? Tem sol. Vento e vento e vento. Hoje tu farias setenta e cinco anos sobre a Terra. Estive em exames sob um tomógrafo por esses dias e lembrei-me de ver-te no túnel de cobalto, lá longe, na minha infância dura. Infelizmente, não pude trabalhar as lições do nosso breve, último e triste encontro. Não lembro uma palavra do que disseste. Não vi sequer o teu rosto. Tenho que dizer que te amei, como a ninguém mais. Ainda te coloco sobre pedestal em museu interior e, como costumo dizer, não há mérito algum nisso. Tanto te chamei naquelas noites, mãe. Depois, soube que, em assim procedendo, mais te fiz sofrer. Perdão. Continuo a chamar-te, com mais respeito. Quem sabe, tu estiveste sempre presente, a amparar aquelas almas de marujar, a minha junto com as outras. Àquela menina a quem eu quis desatar o laço do avental e que o mar lambeu. Quem sabe, estás aqui comigo neste momento. Será que tu compreenderias e saberias orientar as mazelas pelas quais passo? Será que entenderias? Perdoarias? E eu teria humildade para ouvir-te agora, aprender? Ah, mãe da minha alma, fica perto de mim. Alivia a apreensão das calmarias. Onde quer que tu estejas, preciso da tua luz. Recebe meu curto pavio, lúcido. Que os guias velem por ti!
Anjos protetores
A senhora Marscha, falecida há alguns meses, deu de trazer, das brumas, livros para Madame. A cada quinze dias vinha ela, vaporosa, dessas aparições cuja descrição na Terra é mais conhecida como assombração. A papelama estava toda distribuída no tubinho de laise que ela envergava ou dentro dos sapatos de salto. A dama rósea, linda, remoçada, tirava cada página das fibras do tecido que a compunha. O mais interessante era poder tocar a dama e também o objeto que ela estendia. As folhas vinham salpicadas de vidrilhos, brilhos de muitas cores, como se fora pedaços de céu. Escritas em muitos idiomas. Madame ia lendo, sem pressa, o sono mais bem dormido que dormira em toda sua vida. Quando despertava, nada lembrava das leituras. E lá estava a enfermeira chefe Maria, a sentar seu corpo amolecido no banco, sob a ducha. A água morna trazia Madame de volta à vigília, aos poucos. A senhora se deixava esfregar com um óleo forte, feito de muitas ervas, terapêutica para as dores nas costas, quadris e pernas. A enfermeira Matilde, que conhecemos como cabelos de fogo, enérgica, lúcida, deixava o ambiente em brasa. O pouquinho que Madame se mantinha de pé a vinculava à realidade, ao dia. As enfermeiras tinham o cuidado de não ferir aquela pele flácida, já despida de músculos. O efeito era vivificante para as três mulheres. Madame sentia prazer em estar ali, naquele convívio de sororidade. Quando imaginaria companhias dessa envergadura? O que fizera de bom para merecer tal consideração? O trabalho era realizado, de comum acordo, em silêncio. Naquela manhã, contudo, algo novo brilhava em Matilde, ela cantarolava para Madame. Si quieres água fresca, ninã, ven a mi pozo niña, ven a mi pozo[1]. A dona cantava e se ria, Maria no coro. Mão na mão, esfregaço e sofreguidão, veio a duas vozes, Alentejo, quando canta tens o mar à garganta[2]. Ainda ó comadre Mari Benta teu garoto está melhor[3]. Parecia uma oferenda de mulher para mulher. Madame lhes devolveu uns versos, rosa branca foi ao chão, chorou, chorou[4]. Matilde manteve o corpo de Madame em pé e ajudou a secar, às vezes a sacudia levemente, de cima para baixo, dança esquisita e graciosa. Estar na Terra valeu aquele momento.
Com dificuldade de articulação, Madame perguntou às atendentes quantas mulheres recebiam aqueles carinhos. Pediu para ver alguma delas a banhar, a que permitisse, só para ouvir cantar. Pois se o enfermeiro Gaspare entrava agora na casa de banho, com a senhora Perséfone. A enfermeira Joana, a deusa de ébano, substituiria Matilde na tarefa. Madame ficou a uma distância segura, em que podia ver sem ser vista. Milhares de libélulas iniciaram seu baile pelo ambiente. As asas eram de cores que lembravam azul, verde, marrom, amarelo e riscos tênues de vermelho. O voo delas provocava vibrações indescritíveis, que enchiam a pele de cócegas. Perséfone chorou baixinho enquanto Maria lhe ensaboava. A enfermeira usou o chuveiro manual para molhar-lhe o corpo. Desligou a água. Perséfone dava a impressão de que iria convulsionar a cada segundo. Sua fisionomia se alterava em esgares violentos, acompanhados de gritinhos graves, ave rapineira a olhar da Serra. Maria, paciente e ritmada, foi avançando os esfregaços, deixando a parte da frente do tórax e o quadril para o final. O que acontecia quando as mãos vinham para essas regiões era comovente. Uma mulher luxuriosa esplendia e se insinuava, gemendo profundamente. Maria tratava tensão e relaxamento com cuidado. O doutor Wong Lam prevenira sobre um possível enfarte fulminante nessas ocasiões.
Foi então que Madame viu. Joana igualmente. O homem robusto apareceu, tomou daquele corpo frágil e debilitado. Apertou a dama contra a parede do box. O chuveiro se abriu com as vibrações. Sob uma cascata de libélulas, veio cena intensa, delirante, a qual Joana velou com finesse. Maria permaneceu na função, a situação era habitual. Ás vezes, a enfermeira chefe precisava se recompor, sentia tontura com aqueles surtos. Talvez pela presença de Madame, Maria aproximou-se da pia, abriu a torneira e colocou a cabeça sob a água gelada. Logo depois, enquanto se secava, tremeu e precisou sentar-se. Joana pediu que a chefe respirasse e fez alguns gestos longitudinais, de despedida para o homem, que sumiu em paz. As enfermeiras, juntas, sentaram a paciente em uma comadre própria para banho pélvico. Joana derramou porções de ervas que logo penetraram as narinas. O banheiro se encheu de vapor, tanto que não era possível ver qualquer coisa. Joana entoou um canto de cura poderoso, cujos sons escapavam à compreensão de Madame. Logo o relaxamento se estabeleceu. Gaspare veio buscar a senhora já composta e adormecida. Maria vomitou. Joana, acostumada com todo aquele rebuliço, ofereceu à colega água tônica. As enfermeiras sentaram-se na borda da banheira e deixaram que o choro as acalmasse. Só então se deram conta de que Madame escrevia, febril, em meio a nuvens de vapor de louro.
O escafandro era pesado, inapropriado, Madame foi contando. José Gaetano, naquele tempo grumete, recebera a incumbência de mergulhar e trazer cavalos marinhos para a filha de quatorze anos do intendente. Estavam a bordo da Lusa. Duas tormentas em três dias. O intendente acreditava que um presente como cavalos marinhos poderia afastar o terror estampado no rosto da menina. Tal gesto lhe compungia o coração brioso e pouco afeito a cuidar de alguém. A filha representava fardo. Pena, pois era uma jovem meiga, ensimesmada, cheia de luzeiros e fantasmas ao redor. Eis a primeira lição dos filhos: conquistar a simpatia dos pais, por serem eles quem são. Os dezessete anos de José traziam novidades com as quais ele não andava disposto a lidar. Já tinha presenciado os colegas de catre, nos cinquenta centímetros quadrados que cabiam a cada um, em luta feroz com algo indeterminado. A escuridão, o balanço e o cheiro de mofo das acomodações não inspiravam grandes curiosidades. O que chegava aos ouvidos do moço eram gemidos contidos, de dor? Saudade? Choravam? Como a labuta era extenuante, José não ficava muito tempo desperto para que a imaginação o levasse a resoluções de enigmas.
A filha do intendente o perturbava. Os cabelos claros dela e os olhos, olhos do verde da calmaria, produziam algo como comichão na pele, um afogueado na face, um calafrio parecido com febre terçã. Era a menina despontar no convés para que o sossego o abandonasse. O grumete tinha ímpetos de puxar o lenço que cingia a cintura da moça. Aproximava-se dela, silencioso sem surpreender, e interrompia o movimento da mão a meio. Por sorte, sempre havia um cordame, um balde ou esfregão para apanhar, caso fosse flagrado em tal atitude invasiva. Outro dia, quase alcançara o laço e sorriu, do embaraço que poderia causar.
A madrugada achou o rapaz de olhos abertos, ansioso. Acostumado a dormir no convés em menino, subiu para a refrega, o céu negro picado de estrelas. José impúbere aliviou-se na beira da embarcação e sentiu a força de sua juventude irromper pela primeira vez fora do universo onírico. Entendeu sem entender aqueles gemidos sôfregos que embalavam seu sono. Entendeu também que a filha do intendente era seu objeto de gozo. Dizer objeto de gozo é antisséptico, explicava superficialmente a graça em que o moço viril se encontrava. Aquela noite o seduzia a tocar o santur, instrumento arrematado nos dados em Cárpatos e dedilhado quando havia folga. Ficou no tombadilho, próximo ao camarote da varanda, em pé e imóvel, a olhar o céu. À proa, um estranho ruído lhe acordou do idílio. Atento a escaramuças, dirigiu-se sorrateiro ao extremo da embarcação e o que encontrou lá foi ferro de marcar.
Dois trinqueiros se revezavam contra a filha do intendente, ela inerte sobre rolos de corda. Como a moça saíra do camarote ninguém soube, ninguém viu. Houve quem dissesse que era sonâmbula. Algo em José morreu para sempre naquele instante. Sabia que não teria envergadura para enfrentar aqueles homens brutos. A energia que emanava do ambiente avisava morte iminente. Andou a centímetros do chão. Um José triste tocou a sineta de alarme. O que se passou depois é de se esperar. Não havia físico na tripulação. Uma portuguesa muito calada tratou de ajudar a moça ainda com vida, alguns hematomas, a donzelia perdida e a poesia talvez.
O intendente fez voz de comando. Os trinqueiros ficaram pendurados pelos pés ao alcance do mar, sutilmente sangrados, a aguardar a visita dos tubarões, os bichos mais antigos e pouco evoluídos do mundo. Yannes, capitão da Lusa na ocasião, fez vistas grossas a tamanho rigor. Sabia que é difícil para um homem do mar resistir aos gigantes da alma, tentações de toda sorte, necessidades bestiais, nada de respostas ou esperanças. Nem todos os monstros marinhos e sereias dentuças e outros sustos usados para reprimir a sede dos homens davam conta de os apaziguar. Era de colocar-se no lugar do intendente, aquele jovem bonito e cheio de arrogância. Yannes decidiu que castraria os verdugos de sua filha, caso tivesse uma.
A vida no mar era para poucos. A vida na Terra era, análoga, uma dádiva. O sol despontava. José grumete desceu ao plano abissal pela popa. Envergava o escafandro, ia buscar cavalos marinhos ao seu gozo devassado. Do outro lado do barco, sem que ninguém testemunhasse, a filha do intendente jogou-se, como viera ao mundo.
José Gaetano quase caiu no choro ao saber que tudo já foi escrito. Todas as ideias terrenas figuram nos ases de todas as canções. Era de se esperar que um poeta tivesse posto em verso rotas de ver de Vasco da Gama e outros heróis portugueses, aquele poeta cheio de sis, extraordinário no ofício. E que tivesse dito, este trovador ou outro, sobre a passagem das horas, que se era irremediavelmente infeliz.
O corsário ostentou o torso juvenil, apesar da dor. Cavou sepulturas desde menino. Das tumbas que afundou, cresceram jardins. Jacintos, cravos, sempre-vivas, jasmim de poeta, lírios roxos, capim gordura. A árvore de magnólia que plantou no litoral de Santos, Brasil, continuava perfumada depois de trinta translações. Sempre que a rota coincidia, José a ia visitar. Agora, dizia bons dias ao pé de flores de loto da menina do laço, esposadas nos Açores. A história dos cavalos marinhos voltava sempre à mente do comandante. O corpo frio, branco, nu e magoado da filha do intendente, o laço que ele nunca desfez. Talvez nesse laço morasse o nascedouro do amor que um homem nutriria pela Humanidade. Amor é aprendizado sustentado a nó.
Quando a Lusa aportou em Madras, o marujo foi achar um lugar e ali plantou girassóis. A filha do intendente precisaria de sóis, de preces, da Nossa Senhora dos suicidas, que lhe fosse buscar do vale, que lhe curasse, no espírito, as cicatrizes dos trinqueiros com fome. Sabe-se lá mais que histórias teria essa menina mulher, de quem José moço nunca ouvira um som. Amor, in natura, é silêncio.
As mulheres do corsário, contadas aos dedos, foram a filha do intendente, um panfletista português que cantava no cais, um cantaor, uma cortesã em Bengala, a Rosa, um engenheiro naval, a jovem da carroça, um gaitista de vira, um tocador de guitarra que fez um filho e se casou estando a andar com o corsário, um Lord inglês, cantor desafinado de vira, todos tão impalpáveis e assexuados quanto a suicida. Assexuado é um tanto estranho escrever, que toda relação de toque, mesmo que só da mão, implica atração e todas essas almas enlaçaram as mãos de José. À filha do intendente, o moço havia ajudado a subir a bordo, tomando-lhe a mão. As demais mãos dançaram em par tanta vez. Todos esses encontros foram feitos de toadas ao pé da janela, nuvem, imprecisões e, como foi dito, roçar de mãos. Um dia, esses encontros de oscular viraram mania. Faltava alguém neste elenco, José deixara escapar.
A vida cobra dos homens uma posição, um lado, um contrato parental, um contrato social, um vigoroso contrato moral. Teto, janela, rendimentos, fogão, água e luz encanadas, tina, férias, diversão, leito individual e coletivo, filhos e um tanto de arte. O que o comandante sonhou para si na maior parte de sua existência foi ter companhia, talvez não das que trocam impressões em lençol, na mesa do jantar, ao lado do gramofone, nas acrópoles, clareiras, beira-mar, naves de igreja, nas óperas e bulevares, praças e passadiços. José, colidente, sonhou flores frescas em vaso todos os dias, cortina de voal balouçante, alguém para quem sorrir de puro contentamento, uma fronha bordada com monogramas enlaçados, um anel de ouro a apertar o anular, alguém que suportasse a solidão dos dez meses de vida marítima, alguém que fosse seu, amigo, amante, amor. E não adiantava dizer ninguém é de ninguém. Teve vontade de casar e pronto. A Rosa e o amor. Fim.
Quando José voltou à Lusa e soube - a menina perdeu-se no mar, os cavalinhos subiam e desciam vagarosos na gamela. O moço teve pena de os deitar às ondas, mergulhou novamente. Não sabia muito da natureza desses bichos e mortes às costas era algo que o grumete dispensava. Abandoná-los às águas implicava riscos. Naquela manhã, José sentiu, o gozo era ser lançado de um balde.
Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra
Suspendem de repente o ódio da sua guerra
E pasmam. Pelo vale onde se ascende aos céus
Surge um silêncio, e vai, da névoa ondeando os véus,
Primeiro um movimento e depois um assombro.
Ladeiam-no, ao durar, os medos, ombro a ombro,
E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões.
Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a flauta
Cai-lhe, e em êxtase vê, à luz de mil trovões,
O céu abrir o abismo à alma do Argonauta. In Mensagem, Fernando Pessoa
Quanta vez, houve oportunidade de praticar a medicina das palavras. Quanta vez, José leu o mesmo canto, esperou o verso por nascer.
Em Madras uma alquimista, a Eustércia, expert na fazedura de garrafas artesanais, vidro português, soube
do talento de José para curar, mais do que ele próprio sabia. A senhora o convidou ppara cantar em uma
sessão de benzer. Uma gestante desesperada queria matar-se e levar consigo a semente do que
considerava seu erro. Para beber, foi-lhe ministrada uma garrafa com preparo não revelado, para que se
acalmasse, acolhesse com resignação o bebê que já vinha. A gestante adormeceu e, meio sem jeito, o
marujo, com o toque do santur, cantou uma cantiga de amigo a mia senhor já lh’eu muito neguei o mui
mal que me por ela vem e o pesar, e nom baratei bem. E des oimais já lho nom negarei. Ante lhi quer ‘a mia senhor dizer o por que posso guarir ou morrer.[1]
Terminada a sessão, a senhora deitou em várias garrafas uma mistura cozida de melado, cascas, gomos de laranja, limão, pedaços de gengibre, cravo, canela, zimbro e rum, na presença de José. Deu as garrafas ao homem, iam ser úteis para frenar um surto bacteriológico na barca. As taxas de escorbuto caíram para praticamente zero, graças ao consumo de tal beberagem. Quando o mal reacendia, e foi assim em toda jornada pelo mar, o corsário ministrou as garrafadas à sua tripulação, além do chá de erva doce, planta milagrosamente viçosa, plantada em latadas no convés. Havia outros tipos de beberagem na nave. Uma, feita com meia garrafa de cachaça, meia de eucalipto ou carqueja ou barbatimão ou combinações de outras raízes e plantas, destinadas a várias enfermidades. A garrafa era vedada com cera de abelha e enterrada por vinte dias. Depois disso, quando aberta, a erva era coada e dada a beber ao enfermo, em pequenas porções.
A Sor era tão imunda quanto qualquer barco do quattrocento, no entanto dispensou epidemias. Sempre que as rotas permitiam, José Gaetano ia beijar a mão de Eustércia e renovar seu estoque, ou algum comandante, conhecedor do mesmo bem, trazia o carregamento para ele. Em uma única tentativa de assassinato a bordo, aparentemente sem sentido, a garrafada com cânfora e arnica foi de boa serventia, uma das únicas garrafas que resistiram ao motim.
A calmaria. Restava alguma esperança, que embalava o comandante, seus dois grumetes, as cartas que eram escritas. Pairava no ambiente a certeza de que o mar os jogaria, breve, em alguma costa oeste. Sobre o tamborete, no convés, José esqueceu papéis antigos. O sentido dos textos estava embaçado pela falta de vento. Caríssimo Monsieur Donis dizia um, que posso eu contar? Que o céu existe e trabalha vinte e quatro horas por dia. Que estrelas protegem os observadores de pássaros, insetos, os geólogos, arqueólogos, os oceanógrafos, os pastores de ovelhas, os poetas, os palhaços, músicos, os lixeiros, os plantadores de batata, tu e eu. Que os tempos mudam, mesmo que os queiramos indébitos. Não é aconselhável engendrar conflitos, ou romances inexistentes, pois que viram veneta, vendeta. Caso ninguém mais escreva à mão e as câmeras não possam mais captar imagens, a saga terrestre prosseguirá, na poeira gaseificada de Andrômeda, do mesmo jeito renovado de sempre. Os grandes pacificadores, misturados ao marasmo, estarão em visita, vão proceder ajustes, entre tudo. Eles sempre fazem isso, sempre, e poucos moradores da Terra estão preparados para os sentir. Que mais eu posso contar? Eu tenho a tendência de falar da mesma coisa, de perambular pela cabine após ingerir algumas gotas de laranja amarga. O gozo é caudaloso, gravita num complexo energético de alto padrão. Tenho-te sentimentos deste gabarito, quero crer. Paradoxalmente, o sentir é tangido por instintos, pelo começo de todas as coisas humanas. Esta mistura é difícil de equilibrar, de transcender. Impossível sublimar potência, antes de a viver. As torna-viagens, os muitos meses sem notícias. Faz-se mister redirecionar as energias aplicadas na saudade. Isso é bom. Que mais eu posso contar? Que tu estás em Goa e eu a meio do mar. Incerto é o tempo de rever-te. Quem sabe o que encontraremos em lugar de nós, quando nos toparmos. Ninguém morre de gozo. Ou morre? Quase todos os dias no mar, infinitos deles, parados na linha do equador. Por graça, doce de natureza, uma latada de flores de Belém viceja, sem uma gota d’água para saciar-lhe a sede.
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