Hospital Casaredo 76
Dar de comer, dar de viver
O piano da senhora Chang era como um rio calmo. Às vezes eram improvisões que ela alinhavava, para depois cultivarem-se pequenas delicadezas, dedicadas às filhas. As harmonias atraiam Loto, que vinha cantar, poemas seus. Madame ficava perto, caderno aberto, lápis no ar, uma palavra pousava, vez ou outra, qual folha de álamo, a flanar sobre a ondulação. Há muito que não via o Douro, teve dó. Um exercício silencioso era necessário, nascer novamente, olhos cor de água. Coração apertado, apertado, apertado, a senhora deu-se o direito de ir cozer, ao menos uma chance teria, de temperar a dor. Por que doía? Por quem?
No refeitório, demorou-se a guiar a cadeira entre as mesas, tinha fluido barroso dentro do peito. Disse, sem som, o nome de muita gente daquele lugar. Perguntou-se se era seu o olhar o mar, o leito, a vida. Já andara em andrajos por todo Potugal, quem sabe fosse lícito um refúgio, onde assumiria, enfim, seu proceder.
Com cuidado, escolheu os ingredientes, instrumentos de corte, vasilhas. O pensamento voltou-se primeiro para o molho. Era preciso um pouco de azeite, uma colherinha de páprica moída, dentes de alho para dar cheiro, bem picados, tomates dos miúdos, cortados ao meio, um pouco de vinho branco, majericão fresco bem picado, um tantinho de suco de limão, raspas de sua casca, um pouco de sal, a pimenta Madame não punha, confiava na páprica. As postas do bacalhau dessalgadas, guarnecidas em filés, do jeito que o barqueiro trazia, permitia uma primeira corrigenda no tempo do sal. A frigideira veio à mente antes de acender o fogo, o alho a dourar com a páprica, os pequenos tomates refogados ao capricho, a meia taça, pouco menos, do vinho, o manjericão agregado, o nadinha do suco e das raspas da fruta, a tradicional têmpera do sal. Dois minutos de cozimento e espera. Os filés tostados a quicar na frigideira por alguns minutos. A transferêcia para o forno, para concluir o cozimento. Depois, os convivas já à mesa, as batatas ao murro e a salada verde servida, deita-se o molho perfumado sobre a iguaria, que será devorada sem demora por enfermeiros famintos, ao som de nesta casa portuguesa fica bem[1] e tilintar de taças. Nesse dia, a Desembargadora Sezna, a da cadeira motorizada, está presente, bonita em seu Chanel cor-de-rosa com arremate preto. Madame esqueceu-lhe o primeiro nome.
Após o almoço, o de Madame a resumir-se num creme de batatinhas sem tempero, o tanto de uma xicarinha de café, o enfermeiro Gaspare a colocou em uma espreguiçadeira do jardim, diante da Capela Rosália, como ela pediu. O rapaz murmurava, a pedido da senhora, eu não sei o que tenho em Évora que de Évora me estou lembrando[2].
Por uma hora, Madame dormiu, como há muito não fazia. As enfermeiras Maria e Joana trouxeram para o mesmo espaço várias senhoras e senhores, alheios uns, carentes, todos, de brisa marinha, silenciosos e reverentes. Uma das mulheres, ainda sem nome, a mais antiga da casa, tinha feridas sérias nos pés e nas mãos. Causavam imensa compaixão as chagas enegrecidas e pouco se podia fazer para deter a degenerescência, além de uma fórmula que a alimentava a conta gotas, pelo nariz. Nenhum gemido. Os atendentes achavam por bem manter a mulher em convívio, ao menos se morria junto de um tanto de afeto, Gaspare já argumentara sobre este assunto com Madame, que ela se dispusesse, sempre, a ampliar a rede de apoio.
Uma sinfonia, um regional
As sombras da tarde eram convidativas ao repouso, à meditação. Os músicos da casa, incluindo a senhora Chang, ensaiavam pela quarta vez um projeto reduzido da Sinfonia Três, de Mahler.
Qual o meu lugar na pauta do Universo? Não sou chorume, tampouco Catarina da Rússia ou dama de harém, ou quinta esposa, ou filho largado, soldado, freira, bandido. Cristino. E posso ter sido tudo isso. Não tem peso agora, entendemos isso? É simples: se alguma coisa na ordem implicada foi lesada por mim – certo que foi, senão estaria arcanjo, é preciso reparar, reparar com esmero, a ficar em acordo com a ordem implicada. É isso, é lógico, louvável, condição de progresso. Recebemos autonomia para construir Alfamas boas, que atendam a todos, nem de luxo, nem cortiços, para figurarmos como melhor nos aprouver, sempre atentos às leis naturais, ao espaço que ocupamos, ao espaço alheio. É justo. Foi este o tear de Madame, a dormir e escutar o ensaio.
Projeto ousado o Mahler, pelo tamanho da orquestra que a obra exige. Sonoridade peculiar, criada dentro da capela. Atraiu aos ouvidos de vários moradores, nos jardins, nos dormitórios. Sinfonia descritiva dos começos do mundo, era assim que soava. Os primeiros compassos traduziram a paciência das forças cósmicas, depois a vinda dos pássaros. Depois um tropel, marcial, ordem unida, para o povoamento da Terra. O clarinete a marcar toda a abertura, às vezes se escutou o flautim. As cordas, bordões dedilhados, eram as primeiras comunicações e relacionamentos dos seres na Terra. Muitas notas longas. Várias pausas e silêncios. Suspense. Explosões em acordes maiores, que modulavam para menores. Percussão, efeitos produzidos pelo dumbeque, carrón, tambores, conchas, carrilhão. Leveza, vez ou outra. Chamamentos reforçados pela madeira, digressões nas cordas. Marcha. Melodias muito doces em alguns momentos. O tropel seguia, vida que segue, a madeira em convocação sutil. Um momento, a chegada de um rei e seu séquito. Talvez o brilho dos sóis. Agora a rainha Ester, com um manto imenso e deslumbrante, lápis lazúli estrelado, esmeraldino, ao som do fole. Os finais das sessões musicais, longos, vívidos, movidos a grupetos, também a notas solitárias. Muitas frases, muitas, ordens brandas, diálogos, boas novas vindas de vários pontos. Mudanças sutis de cenário, como se pequenos seres trabalhassem, aqui, ali. O que será que o clarinete anunciou? Belo solo de cravo, ligeiro. Urgências se ouviram. Suspense que ia, vinha. Dava a impressão de que, na obra, tudo se move pelo compasso binário. Conversa entre flautim e fole, leve e rápida. Solo de clarinete. Baixolão chamou eventos grandiosos, galopantes, elefantes, gazelas, zebras, hipopótamos, girafas. Tudo quente. Houve momentos que anunciavam o grande circo. Trapezistas, malabaristas, bailarinos. Flautim... carrón. O baixo da sanfona. Tudo interligado, do pseudo caos à ordem unida. O andamento acelerou barbaramente e acalmou-se. O conjunto de câmara precisou estar mil por cento atento. A contar cada compasso. Solo de sanfona. Quem vinha agora? Um grande sacerdote? Momento soturno. Sempre, acordes e intervalos maiores e menores se alternando. Pedras a rolar. As melodias, evocações de coisas passadas. Um trecho de sombras. Seria o mar? O que o baixolão convocou? Marcha, novamente. Algum outro nobre se aproximava. Tudo até agora era pautado no chão. Quem chegou, veio em liteiras. Trinta e dois minutos de música, contínua. E o grupo musical manteve o tônus. Outro circo de malabares. Em ritmo de marcha, desde o início da peça. Uma convocação a grandiloquências. A Esperança. Alguém brilhante reluzia agora, entrada bonita. Como os giros no trapézio. Silêncio. Outro movimento. O clarinete chamou. A três. Dueto com Sanfona. Solo de alaúde. Som de passarinhos. Retomada da marcha. Três contra dois. Era pelas dez da manhã na cena, em jardim opulento, bosque. Harmonia e delicadeza se abraçaram. Falas entre instrumentos agudos. Pizzicato. Bela manhã de sol. Borboletas, abelhas. Pássaros. Cervos, coelhos. Corridas. A Natureza por ela. Tudo belo. Joaninhas. Ordem. Gentileza. Um corre aqui, toca ali. Para lá, para cá. Ambiente onírico, desses com anjos. Efemerópteros, aos milhares. Revoadas, sobre montanhas. Sobre o mar. Outro silêncio longo. Novo movimento. Pizzicato. Seres menores. Em marcha. Seres alados. Foz de rios? Cardumes? Chocos em acasalamento. Chuva que vem? Bandos, caminhavam, uns pesados, outros leves. Espaços bem definidos no todo da execução musical. Sem ameaças, tudo seguia bem. Constantes chamados. Atenção bondosa, branda. Novo renascimento? Com solo de clarinete, lá, longe. Notas longas, um momento de grande intensidade emocional. Até parecia início de madrugada. Passarada começando a chilrear. A sanfona convocou o novo dia quente que vinha. Parece que o sopro chamava acorda, acorda, acorda. Reiniciou a marcha, leve e dinâmica. Dia produtivo. O clarinete sem surdina pontuou a tarde, a largueza, a sabedoria. Fiadeiras, algodoeiras, rendeiras, tecedeiras. Sementes faziam esforço para por os galhos ao encontro da luz. Árvores crescidas, respiravam. As revoadas de fim de tarde. Viria tempestade? Mais um manto de estrelas. Os tutti soavam como vozes em coro. Silêncio outra vez. Entrou a contralto. Quem, da casa, teria voz tão maviosa? Noite alta, céu soturno. Human, Human... voz de chamamento, muito suave, em alemão. Uma hora e seis minutos de música. E seguiu. Voz linda, contida. Human, human repetia o chamamento. A voz, um instrumento a mais, de sonoridade hipnótica. Divino momento. Não era possível traduzir o que a voz vaticinava. Convocava suavemente ao conhecimento, ao trabalho, à responsabilidade. E, pasmo geral, entra uma criança, a voz a soar como sino. A missão dos homens na Terra. Quem disse que seria fácil vir a este orbe, que seria uma redução de pássaros a voar, borboletas? Em determinado trecho, fez lembrar a marcha fúnebre de Chopin, acentuada pelo cravo. Pianíssimo final, de mover as fibras mais endurecidas da alma. Silêncio breve. A imensidade em caminhada, reverente. Um largo, meditativo. O repouso ‘dos criadores’. Melodia quase nostálgica, de finalização de trabalho, de férias, se se quiser sentir dessa forma. Parecia mar calmo em noite de luar. O céu e seu desfile de nuvens. O girar elíptico dos astros. Os meteoros vindo. Aurora boreal. Tudo notas longas. Bastantes espaços agora, para cordas, bordão com sopro. Espaço, espaço, espaço. Como se um telescópio estivesse a ampliar a imagem. Alargou, alargou. Algo viria. O olho da vida. Nota longuíssima aproximou o final. Um trecho que parecia dizer difícil, mas lindo, tenham esperança. Partes cantábile, distribuídas entre os instrumentos. Apesar de convocar ao voo, mantinham o peso, o chão, como se o voo fosse permitido depois, depois, depois. Esperança pura, sempre com alerta. E novo fôlego, e novo amanhecer. Novas formas em criação. Coda final. Clarinete. Tudo esteve sob os auspícios do Grande Enunciado Musical. Era ele que vinha, afinal. Suave. Sua voz deslisou por todos os naipes, abraçou todas as imperfeições. Do quase anárquico ao quase sólido, coletivo. Majestoso. Como se dissesse e segue. Terminou quase pianíssimo, quase uníssono. Ainda um crescendo, uma vez mais, pétalas a abrir por toda parte. O tímpano, transportado para o baixolão, marcou o tempo. A longura do final, de ajoelhar. Uma hora, quarenta e cinco minutos e quarenta e nove segundos de som. E atenção incondicional da audiência. Um profundo silêncio povoou o espaço.
[1] Uma casa portuguesa – Artur Fonseca, Reinaldo Ferreira e Vasco Matos Sequeira
[2] Meu Alentejo – Bento Caeiro e João Camilo
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