Hospital Casaredo 75
Barqueiro deita o barco ao rio, barqueiro vamos navegar, mas olha, que o barco vira, lá no meio do Mira, e eu não sei nadar
As preocupações de Madame se concentravam em adivinhar, na manhã que nascia, aquele que viria acompanha-la na nova cadeira de rodas, movida a baterias. A Desembargadora Luariz presenteara a senhora do Bacalhau, por pura admiração, mais por identificação. Mover-se, com tal engenhoca, desafiava os objetivos de sua existência. A cama estava longe de ser cárcere, porém, quando ajustavam a cabeceira em certa inclinação e os pés em outra, a confusão se instaurava. Era assim que Madame se encontrava, em forma de raio, os esfíncteres lhe exigindo ação, que nenhum enfermeiro chamasse às falas, em caso de acidente.
Às vezes, quando se via relegada ao chão, por descer da cama sem auxilio, Madame se deparava com as forças que lhe faltavam, já não era possível percorrer sequer pequenas distâncias de arrasto ou suspender o corpo, mesmo em aclives irrisórios. Lamentava, então, ter desobedecido a orientação da enfermeira de cabelos ruivos. A cadeira comadre, ao lado do leito, a provocava. Resignou-se, ficou quieta entre os lençois úmidos, a madrugada fora abafada. A cabelos de fogo chegou logo, sorriu, beijou-lhe, dera para isso. Matilde, com ares de monja, das que sabem revitalizar um corpo em cacarecos, sacudiu-a, arrepanhou seus fios e teias e a meteu no acento que cheirava bem. Só cabia agradecer. Uma novidade inesperada: a mão direita acionava a cadeira, que ganhava velocidade moderada. Os sensores eram ajustáveis, reguláveis. Como precisava muito de um banho, dirigiu-se ao lugar adequado sem titubear, dócil, para ser lavada pela filha bruta. Madame sabia que havia, naquela relação, muito respeito. Só cabia sorrir.
Entardecer, como cantava o poeta. A velhice era entardecer. Matilde, os cabelos sempre alvoroçados, contido por tranças e estranhas borboletas de aplicar, impôs toques firmes à pele da senhora, que induziam a respirar fundo. Resmungou algo initeligível, talvez para espantar a preguiça. A arenga que Matilde murmurava, em basco carregado, deixava ver algo como subjugar as terras do diabo, um lugar de decadência. Deveria ser um rezo de sua gente. Madame aquiecia, aceitava, respirava, ressucitou. Assim, banhada, veio a fome. O enfermeiro Manoel caprichara no amacinte de roupas, sua camisola cheirava a pêssegos. Lamentou a presença das fraldas, que mantinham o ventre úmido. O pó secante a fez reportar-se a bebês ranzinza.
A forma, entre zombeteira e carinhosa, que Matilde escolhera para despedir-se e deixar Madame as cuidados de Manoel, já não provocava mais desconforto. Aprendera a tirar proveito daquela língua a brincar em seus lábios, mordiscava, o que fazia a moça distanciar-se a rir. O enfermeiro ao seu lado causou prazer. Olhava-o e tornava a mover-se, devagar, ritmicamente. Experimentou a cadeira nas rampas e se saiu muito bem com o manejo do manche. Era decidir, se estacionaria diante de uma janela, se tomaria o elevador panorâmico, ou um corredor em direção ao pátio, pensou em alcançar o portão um. No meio do caminho, retornou em direção ao refeitório. Respirou e foi à lavanderia. Logo atingiu a parreira, atravessou a porta do ateliê sem ruído, passou ao jardim, à Capela Rosália e, mais uns instantes, ganhou a praia.
Que belo o Casaredo, bom lugar para se morrer. Alev, o homem invisível, viagiava todos os movimentos, pronto a auxiliar Manoel, caso fosse necessário. Madame olhava para os enfermeiros e sorria. Mais um pouco e parou, algo sinalizou perigo. Ouvira alguém dizer que o veículo oferecia autonomia para vinte quilômetros e então precisaria de uma tomada. Manoel respirou tranquilo, ainda havia senso e os dois retornaram ao jardim. O caderno saiu do bolso bordado à Rasguito, também o lápis, sempre com ponta e pronto para uso. Antes disso, uma xícara de café com leite e um biscoito de aveia. Os assuntos vieram, enuviados ou límpidos, pensamentos de gente comum são assim.
Às oito horas, a senhora escutou lagos ácidos e flamingos. Ela quereria estar à maneira dos segundos, mas ardia. Foi o tempo de uma brisa, Madame enumerou todos os ocupantes da casa em seu quartel mental. Muitos, ou todos, já moravam em sua narrativa. Ela teve dó por algum tempo. A comunidade emurchecia. Não se conhecia a história de tantos. Madame separou-os, primeiro, entre flamingos e lago. Depois, consultou suas memórias, a saber se a imaginação lhe daria um cenário maior. Não deu, apenas aquela cabeceira de cama do quarto de Matilde, forrada com retratos nus de Georgia O’Keeffe. Recordou-se do último parágrafo que escreveu, sobre os paralelepípedos daquele centro velho de Funchal, o quanto mais poderia dizer sobre o encontro testemunhado ali. Acabou por concordar com Manoel Esteves Cardoso[1], que os amigos nunca são para as ocasiões. Resignou-se e parou diante do espelho grande da entrada, Manoel a deixou em paz.
Madame olhou ali o futuro, onde podia ver as estrelas. Quase todas as noites, escolhia a janela central do corredor e, com os óculos que lhe deram lonjura, admirava a plasticidade da nebulosa, a Ursa Maior, os sorrisos da Lua. Não tinha, ao que tudo indicava, um extrato de imaginação capaz de colocar-se a viver em Vênus ou Marte. Não tinha medo de estar naqueles intervalos escuros, onde parecia haver nada. Pois era lá que se inventaria seu ponto luminoso. Madame poria a sua estrelinha em um daqueles vazios. Acudiu o próprio pulso, fino e descarnado, como o fazia com os enfermeiros. Os colegas que faleceram, que lugar bonito eles construiram. Talvez possuissem um luzeiro mais forte que o seu, podia identifica-los, aqui mesmo na Terra, ao redor dos demais pontos brilhantes, refletidos na iris. Diante do espelho grande, Madame deu com uns olhos seus quase apagados. Viu tudo, todavia, o brilho de tudo abriu espaço às viagens maritimas dos outros. Então, tomou-se em conta.
Não fora convidada a sequer ver a Sor, quanto mais fazer um passeio em ela. Não haveria de chorar por isso. Não podia ser ingrata, o que tivera na Terra, tivera. Ponderou um instante, confundia-se. Deu consigo perto do ateliê, nem notou como chegara ali. Podia, de onde estava, observar o menino a pintar. A fúria do plano de fundo preto dera lugar a uma elegância no empunhar o pincel, o lápis, o pote de tinta. Júlio tinha diante de si uma paleta de cores harmoniosa. Ficava bastante tempo a olhar a figura planeada, as cores. Às vezes, trocava o pincel, não antes de mergulhar o outro em solução limpante. Perto dele estava sempre a pequena Esmeralda, já a dar os primeiros passos, tardios como a fala. Santur deixara a Filó a guarda da menina. A mãe de nove filhotinhos mantinha o ambiente livre de confusões para a menina. A qualquer alarme grave, metia os dentes na fralda da criança e a puxava de volta ao espaço que lhe fora destinado, para diversão dela e também de Júlio. E era este movimento que o garoto flagrava, na pequena tela em que lidava. O focinho pontudo, a dentição forte agarrada ao pano, as costas e o perfil da irmã, gracioso, ereto. Júlio, que floria adolescência rapidamente, andava aplicado com a pintura, adiantado em tudo para sua idade. Quem não sabia, achava que ele tinha doze anos, tamanha a desenvoltura. Atualmente, além de expressar seu íntimo nas aquarelas, intensificara sua presença entre os homens velhos, contava-lhes histórias marítimas, pequenos contos que adaptava das cantilenas de Gaspare, de Gilmar, do pai. O personagem que mais aparecia nas narrativas era um mascarado, que usava um manto invisível e resolvia casos impossíveis além mar, depois partia em sua nau. Também havia o bailaor vermelho e o touro manso. Uma mulher, coberta no rosto por um véu, que sempre fugia quando alguém se aproximava. Uma furgoneta que rodava sem parar e uma menina vento.
Esmeralda crescia, bela mulher se tornaria. Recusava-se a falar, afastada a hipótese de deficiência auditiva. O irmão era como um raio de sol que a fazia sorrir, desenhar gestos no ar. Foi Júlio quem percebeu o estranho costume da irmã, o de dançar para esboçar ideias. Os médicos, após exames, testes, descartaram qualquer limitação fisiológica. Alice Blum, fonoaudióloga, vinha sempre ao Casaredo, para fazer exercícios vocais com os pacientes. Conheceu Esmeralda e passou a praticar com a criança. Houve um encontro entre Alice e Isidoro, o professor de canto, que curou mais coisas do que se esperava. Por conta deste senhor, Esmeralda entoou a primeira melodia com texto, antes de falar.
Madame sabia das amabilidades da vida. Sabia também que toda doçura pode trazer amargor logo mais. Rosália que o dissesse. É como as árvores, a lutar na floresta por um raio de sol, a dar galhos para enxerto. O esforço não é gentil. Ultimamente, algo em seu intimo exigia uma resposta, ou reparação, é o mesmo. Não, não fora voluntariamente que a estalajadeira se agarrara à própria independência. Que abrira mão da família, do amor, do filho. Assim que percebeu que o Cristino ficaria abrigado ao seio de Antária, voou. Foi pela janela que desceu. Jamais foi possível atentar como, nem ela lembrava. Tratava-se de uma boa queda, quebrava bem o pescoço, de modo fatal. Os sonambúlos fazem coisas estranhas. Então, Rosa desceu do mirante pela janela. Tal fábula corria até hoje nas ruas da Alfama.
Quanto tempo durou a peregrinação pelas praias e como Rosa chegou ao Porto. Onde e quando se alimentou, como suportou as intempéries. A memória não guardou vestígios desse tempo, desses surtos. Apenas a lembrança da aldrava, da porta a ranger e Gaspare puxar o corpo esfarrapado para dentro. Um casaco púrpura, atrás de si, um casaco no ar, sem gente que o vestisse. Latidos de cão. Só bem depois foi o despertar, desses acordares onde inicia história nova. O camisolão em farrapos, o babado a escorrer sobre o peito nu, o saião imundo. Veio, de surpresa, o modo de preparar um bacalhau em molho de vinho branco. A boca, sempre seca, insuportavelmente seca e malcheirosa, umedeceu-se. Lágrimas, poucas, mas lágrimas, lavaram os olhos. O calor sob a parreira, o som que vinha do mar.
Madame adormeceu e já saltava para outro horário, diante do mar. E Júlio, de sua bancada, pensou que a avozinha havia morrido. Por sorte, o grito se lhe estancou na garganta. Foi o tempo da senhora se recompor. Lágrimas correram dos olhos do menino. Ele largou o que fazia, foi abraçar aquela avó amável. Ficou debruçado sobre seu peito, enquanto ela lhe afagava os cabelos e cantarolava, com voz pequena, a canção do barqueiro do Mira. Sossegados os dois, cientes de que havia tempo para combater mais um pouco as terras do diabo, Júlio voltou à sua tela e Madame guardou o caderno no bolso bordado à Rasguito mais uma vez.
[1] Referência ao livro Explicações de português.
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