Hospital Casaredo 68
Luar de consolo
O entardecer chegou úmido e empertigou as dores. Sabedor disso, o enfermeiro Gaspare virou Madame de lado no leito, era preciso confortar suas costas. Para surpresa do rapaz, a escritora segurou seu pulso e não largou, parecia triste. Mais alguém havia deixado este mundo, sem alarme, sem alarde.
Para a senhora Rasguito, a oportunidade de murchar se concretizou no início da manhã. O desenhista da lousa, J.G., antecipou o fato em sete horas. Representou, em lume róseo, a senhora Marscha a envolver a dama dos cem bordados, elas no cubículo onde Esperança seguia reclusa. As três moiras davam adeus a Madame, ela a olhar por uma pequena janela do corredor.
Naquele dia de poucas flores a senhora Dois, nomeada Rasguito, partiu sem um ai. Ela era de sorrir todo tempo, até nas dores agudas de sua colite, quando então rasgava camisolas. Passava o tempo a bordar no ateliê, toalhas, guardanapos, golas, bolsos. Foi este o legado que deixou, centenas de monogramas e passarinhos. O paninho de ninar bordado, com que a senhora Chang Chang lhe presenteou, ato bondoso, inspirou-a a parar de destruir as próprias camisolas.
Nada se sabia a respeito da senhora Rasguito. Nunca dissera palavra. E então partiu a dormir, sem emitir ai. Vestida com sua camisola mais nova, sem sapatos. O prontuário apontava oscilação de comportamento, coincidente com a última contenção da senhora Esperança. Tornara-se irritadiça, chorosa, não quisera mais as agulhas de bordar, permanecia no leito todo tempo. Do dia em que Esperança foi retida, foram computados três dias de vigília, em que Rasguito só fez chorar. Passados dez, partiu a dormir, sem emitir ai. Vestida com sua camisola bordada.
Sem que algum enfermeiro impedisse, passaram aquela noite de guardamento, diante da Capela Rosália, o senhor da Nossa Senhora e o senhor Omar, moradores do dormitório quatro. Fazia calor, os velhinhos queriam sentir-se úteis. Em verdade, ambos temiam a morte e ela rondava o Casaredo, assim eles percebiam. Naquele ambiente imantado da capela, acreditavam-se a salvo. O senhor da Nossa Senhora cantava baixinho, a imitar voz feminina, algo engrolado que deixava ouvir um Senhoora do Sameeeeeiro chorado ao final de cada verso. Com algum nexo, a voz declamava o mal ela cobre com sal, Sameeeeiro, o mal ela cobre com sal e tornava ao chamamento. Omar, solidário, dançava.
Dois outros pacientes, também do dormitório quatro, foram transferidos ao ambulatório, talvez viessem a óbito. Estes senhores ainda não possuíam nome. Alternados, às vezes em uníssimo, gemiam consoolo, consoolo. Lá fora, o senhor da Nossa Senhora e Omar, exaustos, sentaram-se nas escadas, disseram os nomes Estevão e Efrain. Depois, consoolo e dormiram, sob o cobertor das estrelas.
Maria, a enfermeira chefe, recém recuperada de um enfarto, só deu pela falta dos dois pacientes no meio da madrugada. Procurou manter o bom humor e disse ao companheiro de turno, o invisível Alev, que seu coração já não atualizava mais o sistema operacional, assim como acontece com computadores. Ambos sorriram e calaram, tinham muitos socorros a prestar. Alev ocupou-se de resgatar o senhor da Nossa Senhora e Omar. Despertos, ambos repetiam Estevão, Efrain, consoolo. Devolvidos ao leito, puderam refazer-se, sem adoecer. O dia veio, transcorreu sem mudança de quadro. Gilmar rendeu Alev e foi encontrar os dois velhinhos novamente diante da capela, um a sussurrar o rosário, outro a dançar. As rogativas do senhor da Nossa Senhora tornavam-se cada vez mais extensas, mais de cinquenta chamamentos a Maria de Nazaré, incluídas agora a Senhora das Neves, Senhora-a-Branca, Santa Maria Maior, Santa Maria da Anunciação. Ao colar de nomes, o velhinho misturava um canto medieval, Santa Maria, ‘strela do dia, mostra-nos via pera Deus e nos guia.[1]. Em seguida, como a empunhar uma espada, bradava os nomes Estevão, Efrain, consoolo e seguia a rezar. O senhor Omar saltava de um pé ao outro e girava sobre o próprio eixo para um lado, depois para o outro. O movimento lembrava uma dança circular grega. Dali a pouco dançavamos dois, como se dá nas ilhas próximas a Rhodes. Nada a fazer, senão juntar àquele quadro uma sanfona. Pouco depois, o quarteto do Casaredo se reuniu a eles e o que era para ser sombrio deu lugar a uma lua muito branca.
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