Hospital Casaredo 72
Sentado a um canto do portão três, sempre havia bancos sob caramanchões para descansar, o enfermeiro Gaspare segurava a folha que lhe fora entregue em mãos por uma senhora elegante, de perfume discreto e olhar intenso. Pelos gestos e porte, se não era mãe, tratava-se de uma irmã mais velha de Kyle, o ator da Ópera de Shangai, há vários meses em processo de recuperação no hospital. Ela apenas inclinou a cabeça, um gesto monástico, estendeu-lhe o papel e virou-se, evaporando no ar. Ficou um rasto da água de peônia atrás de si. Gaspare não se esforçou por travar contato com ela. Se quisesse conversar, o rapaz entendeu, ela teria lhe dirigido a palavra e não um esgar. Com intenção pura, Gaspare abriu a carta, poderia conter um endereço, um pedido, um cessar e desistir. A escrita era enigmática, como muitas outras que dormiam em uma caixa de madeira, no dormitório cinco.
Eldorados íngremes, uma escalada
Nuvens brancas, feito navios
Tundra, liame, jirau
Raios, a pintar a água sal
Injunções de trilhos, curva assombrosa
Savanas ao meio dia
Torrões arroxeados de lajedo
Encontros de serenar
Coppola e ulungo
Enfeites de berço e ninar
Gaspare tornou a dobrar a folha, guardou-a no bolso do jaleco e ainda se demorou no banco, embora Santur passasse por ali várias vezes, pusesse o focinho entre seus joelhos e tornasse a correr, uma distração para suas meditações. Filó dava à luz naquele instante, em uma caixa forrada, diante do fogão, a cozinha do sobrado.
Madame acompanhou o parto com curiosidade, decidiu retornar de seu mundo reservado, parecia magoada. Fechou o caderno, colocou-o no bolso da camisola bordada pela senhora Rasguito, pôs ali também o lápis, acariciou o monograma, o pássaro azul que voejava. A última cria pôs a cabecinha fora, parição silenciosa do início ao fim; a mãe as foi limpar, eram nove, malhadas de preto e branco. Gaspare chegou, baixou suas mãos para os ombros de Madame, massageou-lhe o pescoço, a cervical, mandíbula, lobos occipitais. Curvou-se, então, diante da ninhada, não pode sorrir. Olhou para Madame, compreendeu a pena da senhora. Os cachorrinhos seriam doados, um a um, na medida em que desmamassem. Apoiada em uma cadeira, a pena foi cedendo, ambos pensaram no presente, em como tirar proveito da calma, da natureza das coisas e do dever.
O enfermeiro certificou-se de que havia água e alimento para a mãe, leite para as crias, Santur permaneceu ao lado, em posição de descanso. Gaspare convidou Madame para ir à parreira. A paciente aceitou, mesmo sabendo que, naquele horário, o lugar estaria povoado de outras almas a comportar-se, muitas vezes, de modo inoportuno. A suspeita confirmou-se: duas mulheres dormiam em cadeiras de empurrar, uma delas a babar copiosamente, não que isso representasse repúdio, apenas anulava o desejo de beleza. Madame pediu para entrar no ateliê e não respondeu ao aceno do enfermeiro, o olhar dele era rio tranquilo, cinzento, parecia evitar alguém.
A voz de Madame já não apoiava os tons. Quis cantar e não pode. Quem sabe escrevesse a canção imaginada, desde que o enfermeiro Alev lhe trouxesse papel pautado, assim que voltasse de mais um sumiço. Esperaria por ele. Gaspare poderia incluir o tema no repertório do quarteto, se o apreciasse. A senhora nem percebeu a presença de Javier a seu lado. O pai havia recolhido os filhos, limpou Júlio como foi possível, vestiu-os para que fossem passear, em companhia da senhora Chang e do sábio Wong Bohai. A senhora ainda umedeceu uma toalha, a sorrir, para tirar tinta das orelhas e cabelos do menino. A expectativa pelos ovos moles de Aveiro mantinha Júlio exultante, o que divertiu o zufu[1]. O bailaor aproveitou sua folga, pediu uma sessão com a doutora Dung Hanh. Enquanto aguardava a disponibilidade, percebeu a aflição de Madame e, felizmente, a pode atender. Havia pauta no escaninho e ela se apressou em notar a melodia, sem valer-se do piano.
No painel do ateliê secava a primeira aquarela de Júlio. O menino trabalhara com desvelo, antes de entregar-se aos brincos no jardim. As tintas secas nas roupas, na face, cabelos, braços lhe deram satisfação extra. A mesinha onde trabalhava também ia mesclada com as novas cores, o menino não cabia mais no espaço a ele destinado, porém pediu à doutora para conservar tudo, era lugar inspirador. De um jeito divertido, Júlio estendera a Dung Hanh o trabalho daquela manhã. Em dimensões pouco maiores que uma folha de ofício, figurava uma menina em um balanço. Encantada, Loto postou a peça no mural. Júlio contemplou o próprio trabalho daquele ângulo, as mãos apanhadas junto à lombar, um leve balanço do corpo para frente e para trás. Ficou assim por alguns minutos, a mover-se vagarosamente. Então disse amei Esmeralda por mim e pela mãe; pediu à doutora um cavalete. Loto baixou-se, envolveu o menino em um abraço. Sentou no chão e o puxou para o colo. Foi natural. O menino, já crescido, procurou o seio daquela bela mulher sob a blusa, a moça o deixou tocar. A face farejou enquanto a mão afagava. Para sugar, mais um movimento. O peito verteu leite, profuso, suave. Depois de se fartar, Júlio dormiu. Loto, este era o apelido da doutora Dung Hanh, ajeitou o menino sobre as almofadas, cobriu-o com uma manta e fechou a blusa úmida. Nesse instante, Wong Lam pôs o rosto porta adentro, como fazia vez ou outra. Ao ver a doutora chorar, aproximou-se.
Filó dormia enquanto se deixava aninhar, Santur em posição de descanso. O jardineiro Jair, vez ou outra, entrou em casa de Gaspare, chapéu nas mãos, olhou a cachorrinha e tornou ao serviço. Andava a revolver um canteiro ao lado da enfermeira Matilde, para plantarem rosas brancas.
A enfermeira chefe Maria trouxe, um de cada vez, três mulheres e dois homens à parreira. Te Dan iniciara sua récita matinal, o lirismo chinês era sal a escorrer das montanhas, foz de dois rios sem nome, para curar, expurgar. Maria se deixou ficar ali, apesar do volume de trabalho que a esperava. O doutor Wong Lam, que saia do ateliê com o intuito de escutar as canções de sua pátria, por instante que fosse, pegou a prancheta de Maria e foi concluir a rotina, sem admoestações.
Comentários
Postar um comentário