Hospital Casaredo 71
Los jerseys que se tiñeron de rojo vasco
O tema ainda é semeadura foi contando Madame, enquanto aguardava o assado que a enfermeira Josefine pusera no forno. Por um momento, a senhora deu pela falta do saleiro entre os utensílios utilizados no cozimento. Temia ter esquecido de adicionar esse toque fundamental, para que o prato apetecesse. Envergonhou-se diante da moça, que ali estava para ajudar, e nada disse. O parceiro de tarefas culinárias, Gaspare, fora atender uma emergência com recém nascido e não pode acompanhar com ela a feitura completa do bacalhau à portuguesa. Dessalgado, o peixe manteria algum rumor salino em sua consistência, porém os demais ingredientes não seriam beneficiados. Espiou a garrafa de vinho verde a meio e desconfiou. Ao terminar de redigir o parágrafo Madame sorriu, parecia pomposo e distante da situação. Ela tentou se lembrar do que seria uma emergência com recém nascido. Passavam pelo corredor, naquele momento, os senhores Omar e da Nossa Senhora, a invocar a Senhora das Lágrimas e executar um passo de dança, que lembrava dois gansos alcoolizados. Madame sentiu-se amparada, de alguma forma.
Embora os vários glórias do mundo fossem, ali no Hospital Casaredo, bem recebidos, e entenda-se disso a doçura de uma oração, um carinho religioso, os coristas que visitavam a casa amiúde, era preciso ter cuidado com as exortações, poderiam provocar êxtase ou surto coletivo. Celebrava-se a vida, o bem viver, a fraternidade universal, os sentimentos, tudo com discrição e asseio. Ficavam, apesar disso, os transtornos psiquiátricos para administrar. A morte natural devolvera o tangível à terra no dia anterior, ou espargira suas cinzas doridas, tudo lições a digerir. Madame não se sentia aluna atenta, mesmo assim seguia com suas anotações.
A tarde de Rasguito – seu sepultamento -, compartilhou com todos uma canção singela. Chamava-se Mar impossível[1], e foi entoada por Gaspare, o barulho tenso das vagas como bordão. Pela primeira vez, o enfermeiro tocava o violão em público, tinha valor. Em seus exercícios de escuta com os pacientes, dias antes, o enfermeiro dera à senhora morta aquele fado. A senhora Rasguito, ao ouvir pelo toca-fitas a voz terna de Camané, abraçara Gaspare demorado, em contido afeto e gratidão.
Alev, o homem invisível, não pode evitar um sonho. Nele, viu a caixa que levava a senhora Rasguito ser engolida pelo forno, qual torta de amêndoas. O enfermeiro não quisera despertar os senhores Omar e da Nossa Senhora, mal acomodados nas escadas. Os velhinhos dormiam em paz, um apoiado ao outro, diante da Capela Rosália. Tão forte e disposto, Alev se rendeu ao cansaço, cochilou próximo aos dois, sonhou. Saiu do transe um tanto desconsertado, só os três no espaço, mais o cão e o pequenino, a brincar em silêncio perto da palmeira. Alev ergue-se, compôs-se e aproveitou uma lufada de vento em direção ao continente, espargiu a páprica doce que trazia no bolso, uma crendice sua, arraigada. Parte do pó, a rodopiar, tingiu o céu e foi assentar no solo, feito confete.
O filho do enfermeiro Javier, Júlio, muito afeiçoado àquele homem peculiar, a quem chamava amca, presenciara todo o funeral, do lado de fora da capela. Para Júlio, Alev era um dos personagens do enfermeiro Gilmar, em carne e osso. Javier chegou durante o que chamou a dança do tempero, em busca do menino. Ainda ensimesmado com o que presenciou, e isso duraria quase um ano, Júlio não tinha palavras para descrever seus sentimentos. Era cedo para entender a lógica da vida, que história era aquela que acontecia dentro da capela, o que era a esteira, o que ia sobre ela e para onde, o que amca levara no pote e enterrara perto da palmeira. Júlio não permitiu que Santur escavasse o chão naquele ambiente, por respeito. Sobre aquela poeirinha com sabor de pimenta que voava, para logo deitar na terra, uma história salvou toda paisagem. Ocorreu a Javier contar ao filho o conto das tintas vermelhas.
Para criar as tintas, as camisolas da senhora Rasguito se transformaram, por encantatória, naquele pozinho vermelho. Aquela substância dava tom no traje de dança do pai. E por que Rasguito precisou desaparecer, perguntou o menino, não satisfeito com a fala. Porque a terra das cores a quis, como o mais distinto dos tons de vermelho, um que ainda não há na paleta da narcótica Adele, continuou Javier. E a mãe também virou um novo tom de vermelho? Javier, voz embargada, fez o menino lembrar da caravana de ciganos, que fora conhecer terras sem mar. Que ele tivesse confiança, a mãe voltaria, e lhe traria o carvão mais brilhante, novos papéis de arroz. O menino ficou calado, um pouco de páprica colada ao seu braço. O tempo passou e o menino perguntou então a mãe não morreu? Não meu filho, a mãe só viajou, um dia ela volta, quem sabe até dê notícias antes disso. Alev estava perto, o olhar de súplica de Javier disse tudo. Na noite daquela celebração de adeus, Javier anotou nova coreografia solo, à qual chamou los jerseys que se tiñeron de rojo vasco.
“A linguagem: um falar com coisas e jamais do oito mas do oitenta; seus nativos: todo uma gente que existe espigada e morena”; João Cabral de Melo Neto
Uma semana após a partida da senhora Rasguito, Alev deu a Júlio uma caixa. Havia dentro carvão, papel de arroz, um touro marrom pequenino, um toureiro vestido de vermelho, tintas em pó de várias cores, muitos tons rubros. Veio também um envelope, uma foto de Amparo ao lado de Clavele, em frente ao trailer. Uma carta breve, em que a mãe dizia amor, que estava bem, e que conhecera duas ou três terras sem mar, mas não eram suficientes para acalmar sua vontade. Ficaria mais um tempo longe. Pediu que o menino amasse Esmeralda por ele e por ela. Que contasse à irmã sobre a mãe, não esquecesse. Por último, pediu que o filho enlaçasse o pescoço do pai, encostasse a cabecinha no peito dele e lhe dissesse a coisa mais bonita que pudesse, pois seu pai era homem bom. Ainda pediu que, se houvesse espaço, o menino usasse um pouco do vermelho rasguito e das outras cores em seus desenhos, já estava na hora.
Alev contou a Javier, em um de seus sumiços, que vida de cigano é sofrida mas tem valor, lealdades, medida justa. Que a ex esposa estava bem, apesar das privações. Fora incluída, era um dos ciganos da caravana. Omitiu os pedidos de desculpas dela, achava que tais coisas não se podem dizer assim, por porta restante e ele também não tinha talentos de pombo mensageiro. Alev sabia que Amparo não voltaria, mas nada disse. Javier, que ajustara o coração, passou a ver em Alev um outro tipo de amigo, além das confidências. Para Alev, Javier era ícone. Os dois passaram a conversar ainda mais. Tomavam ambos a direção do farol vez por outra, invisíveis. Ninguém da casa jamais os viu juntos.
Uma xícara de manteiga fresca. Quinhentas gramas de fécula doce, três ovos, uma colher de fermento químico, uma xícara e meia de açúcar. Misturar os ingredientes com as mãos, colocar em forminhas e levar ao forno aquecido por vinte minutos. Madame virou a página do caderno levemente esbeiçado. Estacionara a cadeira em seu lugar sob a parreira. Olhou Júlio a desenhar, Santur e Filó a seus pés. Javier depôs a cesta onde Esmeralda dormia ao lado da senhora. Vez ou outra ela a embalava suavemente, murmurando canção ininteligível. O rapaz, a aproveitar o intervalo repousava, deitado no gramado. A idade apontava-lhe as primeiras marcas. A luz de Javier era amena, apaziguava. Madame retornou à receita, pensou se não faltava água ou leite, assentiu, virou novamente a página e escreveu.
Recriar cada momento belo já vivido, ir mais (...) Fernando Brant
Homens sentimentais são barlavento. Cada vez que entram na vida forjam boça, estilha de corrente. Em alguns momentos são boia, noutros, estibordo. Nas cabotagens, tais homens são esperança, taverna, riso e carta de marear. Homens sentimentais são ajuste da escota, de estofo da maré. Ai, que eu sinto saudade. Se a vida tem algo de graça, deve ter, os gatos fazem troça a esses homens, urinam seu cheiro marcante, roubam e olham, como se conhecessem o final da história.
Se algo José Gaetano fez nesta vida, foi acolher gatos. Por alguns José fez o bem, foi pai. A outros, perdeu. Um deles dormia na cabine da Sor, abraçado aos ossos da pelve da caveira Rafaele. Há os poetas que falam de gatos, anotou o comandante. Hoje estou só alguém com saudade dos versos de ninguém. Nesses dias, em que tudo parece estagnado, é preciso uma carga extra de foco e um gato. O calor excessivo servia de lastro às alucinações de José. Vinte e sete dias de calmaria, já nem se lembrava bem. O gato permanecia, largado entre os ossos. O carpete cor de chumbo, manchas e poeira e ácaros, recendia a bolor. Para mim, continuou José, é tapete verde fundo, verde noite. Da janela eu vejo o ocaso, em azuis rosáceos, violeta, gelo e gris. Nuvens gato, homem, saudades, a luneta não tem como salgar. O leme, nem sempre firme. Ainda bem que aceitei este gato no barco. O que seria da sanidade, caso eu não tivesse o bichano por perto, nos tempos de preguiça? Mensageiros celestes acenam para mim. Um deles, na forja de anjo cantor. Mergulho na perspectiva, supersticioso, no embalar do mago da luz, o calado a sustentar meia nau, quilha e água perfiladas. Alaranjados azipods, em tarefa de busca, um tombadilho de giz. Eu, José de ninguém, rememoro as fragatas a desaparecer na paisagem de Terçanabal, os marinheiros a gritar canções eloquentes que não, não falam de gatos, mas de cisnes.[2]
José, depois de ler o que escrevera, pensou em deslocar aqueles pensamentos para o que seria a primeira página de seu livro. Estacou. Levantou-se, caminhou de um lado a outro e eram três passos, mais três. Olhou pela escotilha. Sol tórrido, poderiam estar nas Canárias, mas era o equador. Se ele encontrasse corsários amistosos após esta calmaria, faria bom escambo. Há tempos, não tinha chá em sua cabine. Quase não havia comida na barca, tampouco água potável. O mais longe que José ficou, de um cantil do líquido sagrado, a invenção mais sábia da vida, um dia apenas. Saudades de um aquífero.
Muita coisa passou naquele instante. O meridiano interno deu para desprezar a quem José mais queria. É assim o querer que não respeita regras de fronteira. O Donis teria compaixão, quando ouvisse as circunstâncias dessa decepção. Para José era urgência, dar sentido a tudo. Sentia fome e sede, imaginava a companhia de um gato, de um esqueleto. O gato miragem, na dúvida, esgueirou-se de manso e nunca mais foi visto. Rafaele permaneceu a fumar sua cigarrilha.
O mar não era para muitos, a vida no barco, menos ainda. A quietude das águas enfraquecia o organismo. José se obrigava a permanecer acordado. Não se lembrava daquele rum sob a mantilha, melhor assim. Como um relógio que se quer consertar pela lógica, o bucaneiro desmontou seus últimos tempos. Agrupou as peças por seção. Conhecia a engrenagem, não era marinheiro de primeira instância. Um vagalhão o derrubara. Certo. Era norma da jornada haver muitos deles, mais tempestuosos.
José envelhecia a olhos vistos, não sentia medo. Uma hora se tem romance, pensou, outra tudo é tirado, outros cardumes surgem. Por que o cuco enlouquecera e o carrilhão cantava a cada cinco minutos? As mãos firmes no leme inventaram nova canção. A voz batia em uma parede cismarenta e voltava ao cantor. Delirante, José Gaetano cantou eu te digo meu amor, porque assim descanso, o amor que inventei eu te dou. Eu te dou o amor planeado, do mais manso do meu peito, amor descantado dos versos que quebrei. Teu olhar, feito rio arenoso, é o leito em que me fio até a hora de partir. Eu te digo meu amor, vem ter comigo que estou sozinho, e o meu amor te dou. José deixou de contar as sílabas, o intérprete que se entendesse com o ritmo das ondas, sob a colcha de fonemas. Soltou a pena, tornou a pegá-la e a soltar outra vez, tocou à testa Rafaele. José Gaetano chamou suas mulheres dentro. Liandra, Leocádia, Jovina, Évora, Mairile. Mairinck. MacLian. Tomou a mão a essas damas íntimas, suas faces, suas plumas e desforras e foram, todos, luxuriar.
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