Hospital Casaredo 70

 



Era dia de semear alguém 


 

O ciúme lançou sua flecha preta
E se viu ferido justo na garganta
Quem nem alegre nem triste nem poeta
Entre Petrolina e Juazeiro canta (O ciúme, Caetano Veloso)

 

 

Mais uma vez, do fundo do coração, pedidos de compaixão ao leitor, que a vida chama os estudantes da Terra, é inevitável, assim como lhes outorga passagem de vinda, temporária. Não há equação mais simples. 

 

Madame estacionou sua cadeira motorizada no corredor, quase à porta de seu dormitório, na esperança de que viessem aqueles dois senhores que foliavam, para que ela os pudesse seguir. Percebia a tentativa de paz estimulada pelos atendentes, achava o gesto lícito, para todos. Não sabia ao certo, para onde se dirigiam os mais aflitos, só queria a companhia daqueles gafanhotos saltitantes, que apelavam a Maria de Nazaré em sequências simétricas e calmantes. Os enfermeiros do plantão permitiram que a senhora ficasse onde estava, havia sol, a vista da janela, talvez fosse mais aconselhável a ela, olhar o mar daquele ângulo, manteria os nervos passivos. 

 

As enfermeiras Matilde e Catarina levaram outras senhoras, dos vários dormitórios, para o jardim da Capela Rosália. Um burburinho acompanhou o cortejo e aumentou, na medida em que desciam a rampa. O espaço, imantado de espiritualidade, se encarregou de as sossegar. Fazia uma linda tarde de sol, leve brisa, leves olores, respirados ao mar. Matilde lavara o rosto e ainda mantinha, na máscara que usava, o lenço com essência, que o colega Gaspare lhe dera. Vez ou outra, Catarina ajeitava uma mecha solta daquele cabelo revolto e ruivo, uma intimidade familiar a quem olhasse. Trazia no bolso do avental pequenos enfeites de agarrar os fios; prendeu mais um à cabeleira irmã, como numa guirlanda simpática. Às dezessete horas, a urna de barro com as cinzas da senhora Rasguito saiu da capela, pelas mãos de Alev.  O pouso final, do que fora o corpo, seria ao lado de uma palmeira. As flores do jardim faziam pensar outro planeta, pela exuberância. Eram lírios roxos. Enquanto Alev abraçava o vaso e seguia, chegaram silenciosos Omar, o senhor da Nossa Senhora e Madame. Os dois homens foram sentar-se na escada e logo adormeceram.

 

As consolações nascem dos acenos simples. Uma trança, um pano de capim cidreira no nariz, um olhar, um segurar a mão. As pacientes, do lugar onde estavam, moveram lenços bordados, que todos se lembrem, trabalhos de Rasguito. Teotônio, o cuidador do campo santo, esperava ao lado da árvore, apoiado em sua pá. Alev, o homem invisível, depositou  a urna na pequena cova preparada. Olhou o céu e entoou seu mantra de adeus. A terra úmida cobriu Rasguito. Um pequeno fio de sol escapou das nuvens, como um corte feito a mão. Matilde desabou em um banco, manteve seu lenço sobre a boca e nariz. Catarina sentou-se perto, cruzou seu dedo mindinho ao dela. Soltou logo. Sua pele de porcelana cintilava, perfume de manga. 

 

Duas das senhoras, que ainda não tinham nome, faziam tricô e observavam as enfermeiras. Madame, que viera com sua sacola, caderno e lápis, tratou de escrever Agnela e Astrid, as enredadeiras. Os dois nomes inventados figuraram em um desenho, seis fileiras graúdas de ponto meia, presas a agulhas cruzadas no ar. Era a primeira ilustração de Madame, sem contar as cruzes que desenhava, no início de cada tópico da narrativa. 

 

Não muito longe de Agnela estava a senhora Ana, agarrada a uma bonequinha portuguesa muito feia. O objeto era seu xodó. Apertava a coisa contra o peito como se a estrangulasse, puro apego. As três mulheres trocaram olhares, duas delas cúmplices, a outra ambivalente. Era preciso dar um voto de confiança, a crueldade existe na velhice, nem sempre velada. Ao contrário de fofoqueiras vulgares, estas não tagarelariam, apenas reagiriam com esgares. Foi-se o tempo das destilações pestilentas para elas. Pena, agora os venenos as consumiam. Outra senhora, sentada em outro extremo do jardim, sorvia o ar como se fora o último bocado. Olhava a palmeira e inspirava, arfante, demorava uma jornada para expirar. Madame escreveu Perséfone. E desenhou um lírio d’água branco sobre o ponto meia. 

 

Outras mulheres cochilavam, abrigadas por sombrinhas ou chapéus, talvez sem entender o que acontecia no mundo. O enfermeiro Manoel passeava entre elas, oferecia água. Madame o acompanhou com os olhos e o canto de seus lábios torceu. O enfermeiro ofertou uma garrafinha à senhora Cecília, sabia que estava sendo observado. Achou de gracejar. O nome da senhora a quem fazia a corte viera de sua parecença com Cecilia Payne, a descobridora dos componentes do Sol. Na falta do que atirar, Madame arremessou o caderno, que passou desfolhado por Manoel e foi cair a milímetros de uma poça. Envergonhada, a senhora começou a chorar como menininha, descoberta em ato fútil. Gaspare agachou-se ao lado dela e ficou, a olhar o entorno, à espera de que o pequeno surto de ciúme passasse. Madame, que ainda segurava o lápis, teve de volta seu caderno e três palmadinhas na face. Olhou por um tempo seu desenho, olhou Manoel, deu de ombros, anotou uma receita muito simples de biscoito de polvilho e depois deixou vir mais um detalhe da saga que ela compunha há sabe-se lá quanto tempo.       

                                         

Apurar a escrita é tarefa complexa, escreveu Madame, feito certos planos cruéis, elaborados por décadas. Chega-se a um cruzamento, onde é necessário tomar decisões. Banho diário, mais de um, corte de cabelo, logo cheirar a velhice e embolar os fios ao travesseiro, assim o texto padece. Veja como sofrem, por exemplo, os velhos iguais a Ozório. O quanto é preciso zelar por eles, para que não gritem. Assim também cada página, cada sessão, cada personagem que deixa seus relatos sem conclusão. Em dado momento parece que o narrador principal evadiu-se, apavorado com as consequências que antevê para determinadas ações. 


A que horas as senhoras foram recolhidas a seus leitos? Que sabor de papa havia para sorver? Quem lhes arrumou os cabelos e a calvície? Acarinhou suas rugas? Ah, como eu gostava dos moços, sorriu Madame no meio do parágrafo. Das filhas, puxa, as filhas que não conhecia. Madame estava em transe, a mercê das constantes oscilações de humor. Que necessidades tinha, que não lhe fossem atendidas prontamente e com esmero? Jamais fora tão estimada. O olhar de um perito, um curador, seria bem-vindo ao ponto em que a saga chegara, apesar das possíveis frustrações causadas por um estranho, que mete o bedelho nos parágrafos nascidos de incrível esforço. Madame escreveu à margem daquela página lembrar do que se trata o apego a bonecas e outras bugigangas. 


Gaspare, o valete dos seus tesouros, das palavras de areia que ela escrevia, seria herdeiro direto. Havia uma folha solta, fixada com um grampo na página seguinte. Era endereçada a Manoel: pus sobre a mesa uma velha saia, para entender seu molde. O tecido, gasto, precisa descansar. A saia tem saudades da Rosa.  Olhei-a, do espelho da minha alma. A saia, godê, estava lá, seu rosto puído em alguns pontos. Menos nos olhos, que ainda guardam um pesponto. Vontade de girar, embalar um corpo pequenino sob o tecido. A saia, eu a empurrei para o lado. É preciso lavar, secar à sombra, sem torcer. Depois, eu decido como remendar. Há tanto o que dizer, tanta história, tanto ponto, os mares para mar. O ópio do sono envolveu-me e eu trouxe as ondas para perto, seu espírito maternal a me salgar. Dormi.  Depois, riscarei outro molde, para uma nova saia, plissada esta, novo rosto, quiçá novo complexo floral, para presentear teu coração. Na página seguinte, Madame esboçou novo raciocínio. 


Vinte e três dias, calmaria. Palavras sem gume. Verbos, substantivos, adjetivos, descomedimentos emotivos, figuras de linguagem acentos, pausas repetição de palavras revisão restauro. Dislexias. Um longo trabalho de gajeiro. Terra à vista. O que eu não daria por um falatório de mulheres nas muretas do cais. Quanta vez, corsário, quanta vez abriste as páginas aos quatorze dias do mês de outeiros? Quantos disparates registrados? Ah, os livros, os livros da coroa nos baús acolchoados, à prova de naufrágio. Quanta vez arribar, quanta vez sentir de perto o bafio das Canárias? Quanta vez o apaixonamento, a mesma palavra fantasma, o tremor eufórico diante de uma página, de não ser possível dormir, de chorar quando a última letra vem? A duras penas, José Gaetano percebeu que, quando se é solidário, a solidão não tem caserna íntima. A calmaria é estado puro. É estadia em enfermaria especializada. É estudo dos sonhos. Aceitou os ensinamentos do momento e manteve o leme. Perdão é sentimento. Qual competente gajeiro, afrouxou os velames, tomou da luneta e o que viu foi seu amado, prateado, sereno, sem ondulações, a se arrepiar de leve. Passado o êxtase poético, ao invés de embravear na monotonia, tratou de pensar na Rosa. Sentiu-lhe o aroma florado, ouviu-lhe a risada que ecoava pelo longo corredor da hospedaria. Tempos de brincar, brindar, girar a sua saia em suaves bailados, tempos de conforto e futricas. Ela se dava a tocar, sentada no tombadilho. Perfilava-se com sutil elegância e esperava. O céu claro, estático, tudo era de um belo carregado, porém suportável. Quase que a Rosa da calmaria lhe sussurrou ele está bem, os mares dele estão mais ágeis, vai chegar logo o dia de se libertarem. 


Madame tocou o pulso de Manoel, como a certificar-se de que tudo era bem, que era novo tempo e que o rapaz era a brisa suave da noite que já vinha. Lembrou-se de mais cantos dedicados à lua que sua mente podia melodiar. Uma lágrima, e só uma, vazou do olho direito. Manoel se enterneceu, abaixou-se, beijou-lhe as mãos e foi para perto de Alev, o invisível, que concluía sua prece. A senhora Rasguito era, enfim, cinza da terra, longo viria botão de lírio amarelo naquele ato.

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